UNO+1 Entrevista: José Antonio Llorente conversa com Moisés Naím
Moisés Naím (Trípoli, 1952) é um dos mais importantes intelectuais da América Latina. Como servidor público, foi ministro da Indústria e Comércio da Venezuela e diretor executivo do Banco Mundial. Como jornalista, dirigiu a influente revista Foreign Policy, escreve regularmente para jornais como El País e dirige o programa semanal de televisão Efecto Naím, transmitido em vários canais da América Latina e dos Estados Unidos. Como autor, ele publicou dois livros importantes recentemente: O Fim do Poder e A Vingança dos Poderosos, os dois publicados pela editora Debate, em que disseca com lucidez os principais desafios econômicos, políticos e de valores do mundo no século XXI, como o populismo, a crise da globalização e o surgimento de novas potências.
P. Como você vê a América Latina?
R. Fragmentada, confusa, lenta. Com alguns pontos de esperança, como o Uruguai, a República Dominicana ou o fenômeno que será a Guiana, com as descobertas de petróleo e gás. Mas, em geral, os três grandes países da região, Brasil, México e Argentina, estão muito emaranhados e muito complicados. E é uma pena, porque podemos estar perante uma oportunidade perdida muito importante.
P. E como vê a conexão entre a Europa e a América Latina?
R. Há décadas eu escuto que os valores comuns da América Latina e da Península Ibérica condenam esses países a trabalharem juntos, a se integrarem, a se coordenarem. Mas não é bem assim. Existem barreiras invisíveis, e outras bem visíveis, como o protecionismo agrícola, por exemplo, que fazem com que o destino conjunto da América Latina e da Europa fique mais nos discursos, desejos e papo-furado do que nas práticas cotidianas de quem toma as decisões.
P. A Espanha e Portugal já têm um importante vínculo e conexão com a América Latina. Mas agora, com a invasão russa da Ucrânia, parece que na Alemanha, França e Itália, até mesmo na Europa Oriental, há um ressurgimento do interesse em ter uma relação semelhante de mão dupla. A América Latina tem recursos e matérias-primas. E também, em questão de cultura ou religião, há sintonias difíceis de encontrar em outras partes do mundo.
R. Essa é a lista. Mas por muito tempo ouvimos “agora sim, desta vez vai ser diferente”. Que agora há vontade, há apetite de coordenar e sincronizar, de fazer alianças profundas entre a América Latina e a Europa. E é muito importante que quem está pensando nisso comece por entender que há um ceticismo muito justificado, muito grande sobre a capacidade de coordenar esses dois blocos. Cada um deles tem problemas domésticos bem intensos. A integração desses países não é instantânea e traz custos imediatos. Além disso, há grupos de interesse e grupos empresariais que com certeza não dão as boas-vindas à entrada da Europa na América Latina, porque não podem enfrentar a concorrência.
P. Recentemente o presidente colombiano Gustavo Petro esteve em Madri, e ele reclamou da tendência europeia de ir explorar os recursos naturais da América Latina, fato histórico, mas que se mantém nas décadas passadas e no presente. Porém, a China, que ocupa um lugar cada vez mais de destaque na América Latina, também não parece ter outros interesses: a extração e uso de recursos naturais para seus próprios fins. E nós, europeus, vemos que, na América Latina, a China costuma ser vista com melhores olhos do que a Europa.
R. Tudo isso é verdade. É como dizem. No momento, estamos vendo na América Latina a presença de mais potências estrangeiras que antes não tinham tanto peso. É o caso da China, que há muito tem uma presença relacionada à exploração de recursos naturais. Mas temos muitas possibilidades diante de nós. A América Latina pode ser a Arábia Saudita da nova era. Se o século XX foi caracterizado, no geral, pelo petróleo, é possível que este seja pelo lítio. E a Argentina, a Bolívia e o Chile podem ser os maiores produtores mundiais de lítio por muito tempo. Mas a Bolívia ou, por exemplo, a Colômbia de Petro, estão prestes a perder o barco mais uma vez por causa de uma série de políticas, alianças e estratégias. Há chances de marcarem um gol contra.
P. Fiquei bem surpreso com a posição da América Latina em relação à guerra na Ucrânia. Não acho que os países da Europa ou da OTAN esperem que ela ajude a Ucrânia com armas. Mas pelo menos condena a invasão de um país por outro. E estamos vendo posições muito neutras. Até a de Lula, para quem não importa quem tenha razão, devemos buscar uma solução pacífica, que para ele provavelmente envolve a Ucrânia entregar parte do seu território à Rússia. Isso surpreende. A América Latina é uma região pacífica onde é impensável um país invadir outro.
R. Deixe-me dizer três coisas. A primeira, que não é a América Latina que não apoia a Ucrânia em sua tentativa de impedir a tomada do poder pela Rússia. As pesquisas indicam que há apoio popular à Ucrânia. Na América Latina, quem discorda são os líderes, mas só porque buscam vantagens políticas de curto prazo. A segunda questão é que querem ter uma presença internacional. Não esqueçamos que, na época, Lula disse que ia resolver o problema do Oriente Médio e lançou uma série de ações que não deram em nada. Ele também disse que a América Latina se encarregaria do desenvolvimento da África, e que o Brasil teria uma presença bem importante lá.
Mas isso é dito pelos mesmos países que não conseguem se coordenar entre si. A rivalidade e a desconfiança entre o México e o Brasil são lendárias. Esses são países que não se conhecem e entre os quais há pouco intercâmbio de comércio, pessoas, tecnologia e cultura. O Brasil não tem sido o país mais aberto para coordenar ou fazer alianças com seus vizinhos. A questão é como vai fazer isso com potências extrarregionais. Há muita postura aí, muito teatro.
E uma terceira questão que explica essa situação é que na América Latina ainda há um profundo desconforto com os Estados Unidos. Há uma velha piada em que alguém é perguntado por que está indo para a Embaixada dos Estados Unidos e a pessoa diz que pela manhã vai atirar pedras e à tarde ficar na fila para conseguir um visto. Os políticos estão mostrando relutância em reconhecer que a Rússia é uma potência invasora, ilegal e criminosa por causa de seu desejo de ser intermediários, por um lado e, por outro, porque as pessoas querem colocar o dedo no olho dos Estados Unidos de novo.
P. Obviamente, a Europa não é os Estados Unidos, mas aqui há algo semelhante ao que você diz: embora na América Latina ela seja criticada, também é considerada um destino a nível individual. Digo isso a muitos amigos latino-americanos que vêm morar aqui. “Você quer vir morar em Madri e mandar seus filhos para estudar aqui. Você não consideraria ir morar em Xangai ou Pequim. E, porém, acha melhor privilegiar o investimento chinês em vez do europeu”. Talvez os chineses tragam melhores condições, mas a médio e longo prazo, o investimento da Europa seria mais fiel ou mais condizente com os valores da América Latina.
R. É bem isso. Concordo totalmente com esse diagnóstico e com sua forma de apresentá-lo. Toda vez que você ouvir isso, pergunte à pessoa que está dizendo: Onde você guarda suas economias? Em que moeda e em que país? Para onde você iria se tiver problemas sérios de saúde e tiver condições financeiras? Você vai ficar no seu país ou buscar os melhores hospitais da Europa e dos Estados Unidos? Em quais países seus filhos vão para as universidades? Há uma longa lista de hipocrisias bem estridentes, mas por trás disso existe teatro.
P. Em forma de autocrítica, eu diria que as grandes empresas europeias, os grandes investidores, devem ter consciência de que, se quisermos manter uma relação privilegiada com a América Latina, precisamos também proporcionar condições privilegiadas. Não podemos esperar que, para a América Latina, pagar por nossos serviços ou aceitar nossas condições acarrete prejuízo econômico, comparado com a opção de usar um investidor chinês. Temos que abrir mão dessa arrogância de que somos melhores e que o nosso é mais caro porque temos valores que devem ser protegidos
R. Sim, eu concordo com isso. No final, os incentivos materiais são muito importantes e não são muito passíveis de mudança. Eles regem a lucratividade e os custos de oportunidade, regem as variáveis econômicas, que não são fáceis de influenciar com papo-furado.
P. Além disso, do lado europeu, a possibilidade de um acordo entre o Mercosul e a União Europeia foi abortada; isso poderia abrir as portas para futuros desenvolvimentos comerciais e uma integração mais eficiente. Alguns países europeus frearam esta aliança potencial e atualmente não parece que haja alguém a defendendo.
R. É bem isso. Temos uma longa lista de acordos, tentativas de unificar e alianças transregionais. Outra opção passou a existir depois do Mercosul, com a Aliança do Pacífico. A ideia de unir o México com todos os países do Pacífico, sem muitas condições, para que pudessem trabalhar juntos, gerou bastante entusiasmo. Foi uma boa ideia. Mas depois, aos poucos, diferentes presidentes foram esfaqueando a aliança, que a enfraqueceu até que desapareceu. Vários países o consideraram um simples acordo de livre comércio opaco que beneficiou os Estados Unidos. É uma pena que tenha sido visto assim, porque esse acordo tinha possibilidades materiais concretas. Houve a ideia de criar uma rede elétrica entre esses países. As possibilidades para a infraestrutura eram infinitas. Foi outra oportunidade perdida. Esperemos que não haja outras.
P. Quando vemos essas oportunidades perdidas, a ideia da União Europeia ganha força. Para mim, esse é um dos movimentos multilaterais mais relevantes, senão o mais relevante, dos últimos anos. Tantas coisas foram conquistadas como modelo de integração multilateral que é uma pena que não sirva de exemplo para uma maior colaboração regional na América Latina. É verdade que isso é bem complicado por causa das diferentes realidades políticas dos países. Mas, na Europa, os países também não eram tão parecidos, e seu esforço, sua renúncia à soberania e às capacidades nacionais construíram algo que acho admirável.
R. Com certeza. Eu apoio com entusiasmo o projeto europeu e acredito que não é importante só para a Europa, mas para o mundo. Sua presença e influência significam a presença e influência de ideias e valores que eu e muitos outros compartilhamos, os de uma ordem liberal internacional. Você quer que a China, a Rússia ou a União Europeia tenham mais influência à mesa onde são tomadas as grandes decisões? Mas, no caso latino-americano, pode ser pedir demais aos países que não conseguem se integrar com vizinhos com os quais compartilham uma fronteira para se integrarem com possíveis amigos do outro lado do oceano. Isso também deve ser considerado do lado europeu. Em breve haverá um projeto gigantesco de reconstrução na Ucrânia. E se você é uma empresa europeia, onde prefere colocar seu dinheiro no momento? Lá, ou na Colômbia de Petro ou na Venezuela de Maduro?
P. O que você acha do que houver no Chile? Você acha que pode ser extrapolado no curto prazo para o Peru, Colômbia ou Argentina?
R. Na Argentina estamos prestes a ver, pela primeira vez em muito tempo, um governo que não é claramente peronista. Para mim isso é uma boa notícia. É um país que não perdeu a oportunidade de errar sempre que teve a opção. E que olha para trás sem deixar de olhar para frente, porque tem talentos, recursos, possibilidades, experiências, histórias e instituições para fazer isso. A Argentina poderia ser um país ótimo, mas sofre muito com o que chamo de “necrofilia ideológica”. Como você sabe, a necrofilia é uma perversão sofrida por certos seres humanos que sentem muita atração por cadáveres. Há uma versão política disso: a atração, o apetite ou o enorme desejo por más ideias políticas que têm sido utilizadas e repetidas por demagogos políticos, em diversos casos, e que acabam deixando o país mais endividado, mais empobrecido, mais corrupto e mais desigual. A Argentina é campeã mundial em necrofilia política. Então, talvez essa mudança seja uma boa notícia para o país.
P. Felizmente, dentro dessa fragilidade, a América Latina não reproduziu o modelo autárquico chavista com uma falsa democracia governada por um único partido, um único líder. Veja o Uruguai, um país governado por décadas pela esquerda, agora tem um presidente conservador. Na Argentina, houve alternância de governo. No Chile também tem. A população e as instituições aceitam o rumo tomado pela política. Isso é uma luz de esperança, não é?
R. Sim. Mas também é bem importante entender que as palavras “esquerda” ou “direita” não funcionam mais. O Chile é um bom exemplo. A Bachelet ou o Lagos, que eram socialistas, tinham políticas que em termos econômicos eram claramente de direita. Já Piñera, que se dizia de direita, tinha políticas de esquerda. Vimos isso em outros países. Para mim, o que mais importa é que sejam democráticos e que não tentem limitar a alternância, que não tentem ficar mais do que a Constituição estabelece.
P. Mas, por enquanto, é isso que tem acontecido. Na Argentina, o cenário com os Kirchner no governo parecia difícil, mas Macri chegou, ganhou e governou. Depois outro presidente venceu e governou. E agora haverá eleições novamente e haverá outro presidente no Governo.
R. Claro. Mas na Argentina o conceito de Governo é bem relativo. Tem um presidente que se senta na Casa Rosada e manda. Mas, de várias maneiras, a Argentina, e isso também é visto em outros países como o Peru, não é governada. Há governos e há alternância, o que deve ser reconhecido, respeitado e aplaudido. Mas não podemos perder de vista que, no fundo, esses países não estão sendo governados. Pense no México, por exemplo, na quantidade do seu território que ninguém controla, além de uma combinação de cartéis, traficantes, militares…
P. Que lições essas duas regiões, Europa e América Latina, podem oferecer?
R. O projeto de integração europeia é essencial para a Europa, mas também para o mundo e principalmente para a América Latina. É muito importante ter sucesso. E a América Latina deve redobrar seus esforços para tentar aderir a isso, mas de forma prática, concreta e realista. A realidade é que, primeiro, antes de tentar fazer essa aliança com um grupo de países do outro lado do oceano, os países latino-americanos devem integrar-se entre si. O potencial de uma América Latina integrada é enorme, significativa e suscita grandes esperanças até agora não realizadas. Talvez, com novas lideranças, haja mais possibilidades de pensar uma América Latina que saiba fazer alianças, primeiro internamente, na própria região, e depois internacionalmente.
P. E o que a Europa deve fazer?
R. A Europa precisa recuperar o entusiasmo dos seus cidadãos pela União Europeia. Quando foi decidida a unificação da Europa, houve festas nas ruas. A comemoração foi muito emocionante. Isso se perdeu e o entusiasmo pelo projeto europeu foi caindo. É importante que os líderes entendam que precisam reconquistá-la se quiserem ser legítimos para ir à guerra ou construir a potência econômica que a Europa pode ser. É muito importante que os europeus, que não são necessariamente especialistas políticos e estadistas, mas pessoas comuns, voltem a ter entusiasmo e esperança no projeto europeu.