Os Estados de Direito Democráticos Sociais Seguros
No início deste século, há apenas vinte e dois anos, inspirados em Fukuyama, autoproclamando-se como o “último homem” da evolução sociocultural e herdeiro da “última” forma de governo – a democracia liberal – o “europeu” caminhava euforicamente para uma Europa cada vez mais unida, capaz de atingir a “paz duradoura” a que se tinha proposto, integrar doze novos Estados do Leste, inimigos há pouco mais de uma década, oferecer a esses países um modelo econômico e de Estado alicerçado numa moeda única e também se discutia nesse momento, congregados numa única federação.
Das três, só esta última não se realizou, muito por força da teimosia dos franceses e irlandeses que rejeitaram a proposta em referendos internos, e da oposição de um Reino Unido sempre entre a Europa e a América, mas a vitória deste modelo, político, econômico e social, parecia tão esmagadora quanto inevitável. À luta pelo Estado de Direito dos séculos XVIII e XIX e à consagração dos direitos, liberdades e garantias, seguiu-se uma outra no século seguinte, capaz de mais do que reconhecer a existência de direitos dos cidadãos perante o Estado, proclamar um conjunto de princípios universais a que acresciam novos direitos como a saúde, a educação, a cultura e o bem-estar. Assim foram criados os Estados de Direito Democráticos e Sociais das democracias liberais ocidentais, como modelo de “última geração,” que providenciavam aos cidadãos qualidade de vida como o mundo nunca havia visto. Aborrecidos de tanto conquistar, os “europeus” decidiram afirmar os seus valores “aqui e além-mar”, convencidos de que o mundo “só salta e avança” na direção certa.
Enganaram-se e dentro da própria “casa”. Houve estados-membros que retrocederam neste processo, e foi a União a primeira a reconhecê-lo com condescendência, a mesma que encararam alguns “vizinhos” perigosos, e, nem um quarto de século decorrido, os “tempos e os ventos” parecem ter mudado. Depois de uma pandemia inesperada, mas ainda assim “migrada” de Oriente a Europa, ou a União Europeia para ser fatual, reagiu à altura dos Tratados e, ao contrário do início do século e quanto aos ditos PIGS, foi capaz de centralizar a distribuição de vacinas e reagir economicamente através da concessão de um conjunto de fundos europeus como nunca tinham sido vistos, na “bazuca” cuja designação, hoje porventura não tão adequada, parecia corresponder à dimensão do engenho.
A verdade é que os Planos de Recuperação e Resiliência (PRR), parecem hoje, e antes mesmo da maioria dos Estados da União Europeia começar a executá-los e muito menos se beneficiar deles, um mero ponto de partida
A Europa dava apoios, os empréstimos mantinham-se acessíveis, os juros e os preços, baixos, e tudo parecia “ir ficar bem” como se anunciava. Eis que, e porque a História parece ser teimosa em repetir-se, uma das isoladas, mas vizinhas, “democracias iliberais” parece ter alterado todos os planos de sucesso. O Império Russo “contra-atacou” e consigo trouxe incerteza ao anunciado século da paz e da prosperidade. É certo que vivemos numa sociedade digital em que tudo se altera e se transforma rapidamente, mas ninguém, em benefício de quem desempenha funções públicas, poderia supor a realidade que enfrentamos e a Europa parece ter regredido setenta anos. O crescimento econômico, que tinha sido mais ou menos uma constante, parece abrandar definitivamente e os preços aumentam como há muito não se via. Esta circunstância, como quase tudo nos nossos tempos, simplificada numa palavra – estagflação – “decretou” o “fim do dinheiro barato” que suportou o nosso crescimento das últimas décadas e parecia ser suficiente para aguentar a pandemia. A verdade é que os Planos de Recuperação e Resiliência (PRR), aprovados a meados de 2021 recorde-se, parecem hoje, e antes mesmo da maioria dos Estados da União Europeia começar a executá-los e muito menos se beneficiar deles, um mero ponto de partida, para não dizer documentos históricos.
A Europa dava apoios, e tudo parecia “ir ficar bem” como se anunciava. Eis que, e porque a História parece ser teimosa em repetir-se, uma das isoladas, mas vizinhas, “democracias iliberais” parece ter alterado todos os planos de sucesso.
Aqui chegados, “navegar à vista” e “viver dos juros” de um Estado Social que foi criado pelo esforço e pelo talento de gerações de europeus seguramente não chegará, e será preciso muito mais do que administrar os impactos do dia a dia, pois mais do que combater o aumento dos cereais, da energia ou dos combustíveis, será preciso visão e alma para encarar os desafios com que nos deparamos. Resistir à exposição europeia da economia russa; integrar milhões de pessoas, muitas delas qualificadas, que tiveram de fugir da guerra; reforçar as verbas dos orçamentos na Defesa; combater o crescimento dos custos de contexto; injetar investimento reprodutivo na economia e manter os Estados Sociais, não será tarefa fácil. Até porque, os impostos têm fim, muitos Estados já estão para além desse fim, e as exigências dos cidadãos cresceram numa área dispendiosa – a segurança, que já não exige “apenas” material bélico, mas também segurança energética, alimentar, econômica e até a cibersegurança e a segurança espacial. É por isso que o debate dos últimos dias, especialmente em Portugal, parece já não ser tanto acerca do PRR que temos, mas sim do PRR que teremos de ter, pois o século XXI, para nossa surpresa, não será o dos Estados de Direito Democráticos e Sociais, mas sim da construção dos Estados de Direito Democráticos Sociais e Seguros.