A América Latina no momento atual da grande crise
Quando me pedem, como neste número da revista UNO, que escreva sobre a América Latina o primeiro que penso é que, por melhor que a Região esteja agora, ela não pode viver isolada de um mundo submerso em uma crise como não víamos desde a Grande Depressão.
Estamos diante de uma mudança de época, não diante de uma época de mudança. O mundo que superou as graves convulsões dos anos trinta foi construído sobre três grandes pilares: os organismos de Bretton Woods (o Banco Mundial e o Fundo Monetário), as Nações Unidas e, finalmente, o Tribunal de Justiça de La Haya.
Agora, aquele grande mundo está em uma crise muito profunda. Sabemos como começou, mas ignoramos como vai terminar.
O capitalismo continua vigorando. Não há país mais capitalista que a China neste momento. A Rússia e a Índia vão pelo mesmo caminho. Embora tenha que mudar, não foi inventado outro sistema melhor (ou menos pior) que o capitalismo: a sociedade acumulou mais riqueza nos últimos cinquenta anos que em todos os séculos anteriores. É importante reconhecer isso.
A globalização também transformou o mundo, alentada por uma mudança extraordinária da tecnologia, dos transportes, das comunicações, da economia, dos investimentos, das finanças e das empresas.
Estamos diante de uma mudança de época, não diante de uma época de mudança
Na América Latina, em 2000, tínhamos quase 48% de nossa população vivendo na pobreza. Agora o número é menor, é de 30%. Ou seja, estamos gerando uma sociedade de classes médias, embora tenhamos problemas pendentes, que em breve mencionarei.
Outra novidade é que, enquanto o desenvolvimento se limitava antes ao Norte (principalmente aos Estados Unidos, à Europa e ao Japão), hoje vemos uma irrupção formidável de economias emergentes (ou emergidas), começando pela China e depois por países como o Brasil, a Rússia, a Índia ou a África do Sul. Dois terços do crescimento econômico do mundo são oriundos dessas economias emergentes.
Falei somente das luzes. As sombras mais preocupantes são o aumento doloroso da desigualdade, da violência ou do crime organizado, que tem muito a ver na América Latina com o infortúnio do narcotráfico.
Outros dois graves problemas são o desemprego –algo que pode destruir toda uma geração de jovens– e a sobredimensão do sistema financeiro internacional. Os bancos hoje movimentam recursos para financiar quarenta e cinco vezes a produção mundial. Tal sobredimensionamento fez com que a engrenagem financeira alimente a si mesma e não esteja financiando a produção real. E isso é o que gerou a crise atual.
Uma última consideração: o mundo capitalista não tem o monopólio da corrupção mas, em grande parte, alimenta-a. O capitalismo, lembremos, nasceu com um grande compromisso moral. O autor de A riqueza das nações, Adam Smith, antes de ser professor de Economia, dava aulas de Ética e Moral.
Estamos diante de uma crise muito complicada, porque é assimétrica. A Europa está padecendo. Os Estados Unidos também, embora nem tanto. Mas não atinge em nada à Alemanha ou à Austrália, e o Japão inclusive está voltando a crescer. Os países da América Latina, em geral, não estão sofrendo com isso. Ou seja, há uma assimetria que não ocorreu durante a crise de trinta.
Nós, os ibero-americanos, valemos mais e somos mais fortes na medida em que continuemos fortalecendo
uma relação que vem de longe e tem pela frente um grande futuro
Também temos um novo sistema de relações internacionais. Vivemos, em última análise, a maior transferência de poder econômico (do Ocidente ao Oriente) na história da Humanidade.
O que dizer sobre o caso concreto da América Latina?
Primeiro que, em termos gerais, não caímos na crise. Isso porque aprendemos a lidar muito bem com a nossa macroeconomia depois de tantos erros. Tal fato se deve ao impacto positivo que teve, e continua tendo, nossa relação comercial com a China. Também porque apreciamos o valor da estabilidade, da abertura ao exterior e do equilíbrio sadio entre o mercado e o Estado. Sobre esse último debate, que nos dividiu durante muito tempo, aprendemos a ser mais pragmáticos.
Nos últimos anos, acumulamos reservas como nunca. A dívida pública da América Latina hoje é inferior a 50% do PIB. E há países que não têm dívida, que são credores, como o Brasil. Há pouco tempo esses dados eram inimagináveis.
A última pergunta, que sempre escuto em diferentes foros da Região, é se essa década pode ser a da América Latina. E a minha resposta é, com toda prudência, que talvez sim, possa ser. Mas vejamos abaixo em quais condições. Se o mundo não enlouquecer. Porque se a China desmorona e a Europa não cresce, fica complicado. Se continuamos fazendo uma boa gestão macroeconômica. Se investimos adequadamente nos âmbitos da educação e da inovação. Se melhoramos nossa produtividade e nossa competitividade. E se, finalmente, continuamos transformando o Estado para que garanta a política social enquanto o setor privado faz seu trabalho com eficiência.
Finalizo apostando no futuro da Comunidade Ibero-americana. O grande capital que une a Península Ibérica à América Latina nãoé somente o comércio: é o das culturas compartilhadas entre povos que falam dois grandes idiomas e que têm um grande acervo em comum.
Continuaremos avançando na próxima Cúpula Ibero-americana de Chefes de Estado e de Governo, que será realizada este ano, entre o dia 16 e 17 de novembro na linda cidade de Cádiz e em pleno bicentenário da Constituição liberal de 1812.
É nada menos que a vigésima segunda Cúpula. Todos os membros da Comunidade apreciam e valorizam essas reuniões de alto nível porque sabem que nós, os ibero-americanos, valemos mais e somos mais fortes na medida em que continuemos fortalecendo uma relação que vem de muito longe e que, a pesar dos desencontros lógicos de toda a relação tem, pela frente, um grande futuro.