UNO Agosto 2013

A tecnocracia também é ideologia

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“A melhor jogada do diabo foi convencer o mundo de que não existia” (Keyser Söze, o protagonista do filme ‘Os Suspeitos’). Parafraseando a citação: a melhor jogada do neoliberalismo econômico e dos partidários da absoluta desregulamentação financeira foi convencer o mundo de que sua ideologia não existia, que estávamos perante uma ciência rigorosa e exata com leis fundamentais tão consistentes quanto a física newtoniana. Durante os últimos 30 anos, o Ocidente presenciou um enorme processo propagandístico que desarticulou todos os mecanismos de segurança que foram criados depois da Grande Depressão para evitar outro colapso como aquele de 1929. Essa ideologia disfarçada de ciência destruiu regras básicas da regulamentação econômica, como se os cofrinhos e os cassinos não pudessem se misturar –os serviços bancários corporativos e os bancos de investimento– ou que, se uma empresa ou um banco é muito grande para quebrar, também é muito grande para existir. Estamos vivenciando uma grande campanha sistemática e contínua contra estes pilares que, ao caírem, derrubaram todo o prédio. Foi um grande engano que escondeu duvidosas premissas ideológicas –como se o mercado pudesse fiscalizar a si próprio, sem precisar do Estado– de inquestionáveis verdades absolutas.

Que o presidente da Itália Mario Monti não tenha passado pelas urnas deveria implicar um problema de legitimidade, não uma garantia de independência

É óbvio que toda essa teoria econômica falhou: A lápide do Lehman Brothers é a prova disso. Mas o salto mortal seguinte foi ainda mais alucinante. A crise econômica provocada pela falência no sistema do setor financeiro está chegando ao fim não com uma reforma de todo esse sistema bancário que quebrou –e que os Governos tiveram que salvar com o dinheiro dos contribuintes–, mas sim com uma contrarreforma do Estado, do público, liderada a partir do mesmo banco de investimentos que provocou o terremoto. Íamos reformar o capitalismo e afinal foi o capitalismo quem nos reformou.

Onde você estava no dia 15 de setembro de 2008, dia em que quebrou o Lehman Brothers? O que aconteceu nestes últimos quatro anos, desde o colapso das grandes catedrais de Wall Street, era até então inimaginável. Vimos George W. Bush anunciar a nacionalização parcial dos serviços bancários norte-americanos. Ou a Nicolas Sarkozy, na cúpula do G-20 de 2009 em Londres, sentenciar o fim dos paraísos fiscais. Que distante ficou tudo isso!

Quem poderia ter previsto, há alguns anos, que seriam esses mesmos banqueiros, os que naquele momento eram ameaçados de prisão, os que terminariam impondo as suas próprias receitas, a sua própria agenda?
Quem poderia prever que veríamos os altos executivos desses bancos presidirem estados sem antes passar pelas urnas?

07A biografia do “tecnocrata” Mario Monti explica muito bem esse processo. Monti, economista italiano, foi nomeado comissário da UE, cargo proposto por Silvio Berlusconi em 1994. Conduziu a pasta do Mercado Interno e dali passou a administrar o escritório mais poderoso do executivo comunitário, o de Concorrência. Depois de dez anos na Comissão, em 2004, o árbitro Monti entrou no jogo que antes regulamentava com a camiseta do Goldman Sachs, onde tinha trabalhado como assessor. Nestes anos –durante os quais também passou pelo Goldman o atual presidente do BCE, Mario Draghi–, esse banco de investimento teve entre os seus clientes o governo da Grécia: O Goldman Sachs ajudou a mentir sobre a sua dívida pública à UE, um pecado original do qual deriva toda a crise da dívida soberana que castiga o euro. A sua passagem por esse banco, cúmplice de uma enorme fraude que prejudicou a todos os europeus, não deixou qualquer mancha no seu currículo. Pelo contrário. Em outra volta da porta giratória –do público ao privado e do privado ao público–, Monti terminou substituindo seu antigo mentor, Silvio Berlusconi, no comando da Itália sem ao menos ter se apresentado para as eleições.

Será que Monti tem alguma ideologia? Interesses? Sem dúvida: O que não tenha passado pelas urnas deveria implicar um problema de legitimidade, não uma garantia de independência. Que não tenha militado em um partido –mas sim em um banco– não transforma as suas opiniões e as suas medidas na verdade revelada. Tomara que o Monti acerte, pelo bem da Itália e da Europa. Mas vestir a sua ideologia não eleita nas urnas da “tecnocracia”, como se fosse um nível superior da política, é um absurdo, que provoca um maior desinteresse dos cidadãos com relação às instituições do Governo –um pacto social que apenas se mantém se as pessoas acreditam nele–.

Apresentar a renúncia ao voto e à soberania como única saída perante a crise, também é uma ideologia: uma ideologia profundamente totalitária

O que está em jogo é o próprio sistema democrático, que fica desfigurado quando o governante não foi eleito: quando essa mudança é imposta e decidida em Bruxelas ou nos mercados financeiros. Essa sensação de desamparo é muito bem explicada pelo filósofo alemão Jürgen Habermas em um artigo recente publicado no Le Monde, no qual resume em uma frase uma opinião cada vez mais generalizada: “A democracia em um país apenas não pode se defender contra os ultimatos de um capitalismo furioso que ultrapassa as fronteiras nacionais”.

Ninguém duvida da gravidade da situação pela qual a Europa atravessa, especialmente a dos países mediterrâneos. Mas a democracia também vale para o inverno. Apresentar a renúncia ao voto e à soberania como sendo única saída para a crise, também é uma ideologia: uma ideologia profundamente totalitária.

Ignacio Escolar
Jornalista e comentarista político
Fundador do jornal Público e seu primeiro diretor. Autor do blog político mais seguido na Espanha, www.escolar.net Trabalha como analista político na imprensa, rádio e televisão, em programas como “La Ventana” da Rede SER, “Las mañanas de Cuatro” e “La Noche” do Canal 24 horas. Já ganhou diversos prêmios ao longo da sua trajetória profissional, tais como o Prêmio Jornalismo Digital José Manuel Porquet e o Nicolás Salmerón de Direitos Humanos. @iescolar

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