A eficácia tecnocrática como ideologia em tempos de crise
Os Governos estão –ou talvez, estavam?– legitimados pelo seu caráter representativo, quer dizer, porque desempenhavam as competências próprias do Poder Executivo graças ao respaldo majoritário de Parlamentos eleitos democraticamente. A Grande Crise do século XXI tem modificado substancialmente este paradigma, pelo menos em parte, porque agora a legitimidade democrática dos Governos foi substituída pela chamada legitimação funcional, entendida como a capacidade técnica de equipes governamentais em encontrar soluções eficazes para os problemas socioeconômicos que nos afligem. Estabeleceu-se de maneira implícita, porém generalizada, a ideia de que a “política” e portanto “os políticos” já não são instrumentos suficientemente eficientes e válidos para superar a atual depressão. Estes políticos, é verdade, foram eleitos nas urnas e por assembleias legislativas, mas, como em tantas ocasiões, a sua qualificação técnica deixa muito a desejar. Por isso, deve ser aplicado o critério de para grandes males, grandes remédios. Se o grande mal é a crise econômica, o grande remédio é a tecnocracia. Ou seja, etimologicamente, o governo dos técnicos.
Foi estabelecido de maneira implícita, mas generalizada, a ideia de que a “política”, e portanto “os políticos”, já não são instrumentos suficientemente eficientes e válidos para superar a atual depressão
Embora o ensaísta francês Guy Sorman tenha feito o apelo para “repudiar a tentação tecnocrática”, por constituir uma ameaça às nossas democracias, a verdade é que a imposição por parte da diretoria franco-alemã na UE de governos tecnocráticos na Itália e na Grécia –implementados por procedimentos parlamentares formalmente democráticos–, não provocou movimentos críticos relevantes. As opiniões públicas italiana e grega aceitaram os gabinetes de Monti e de Papademos como alternativas naturais à ineficiência dos governos democráticos Berlusconi e Papandreu. Não houve qualquer instância social ou política que tenha questionado seriamente o caráter ético-democrático desta forma de proceder, alegando como valor superior que a conquista de soluções eficazes para problemas de enorme dimensão o legitimariam.
Para o diplomata e ensaísta José María Ridao, vivenciamos estes efeitos num “estado de exceção econômica” que, no entanto, não altera a pulsação da intelectualidade ou da classe política tradicional. Muito menos dos cidadãos. A razão deste consentimento, desta aceitação acrítica da tecnocracia, encontra-se no fato de que as sociedades ocidentais interiorizaram que a legitimação democrática dos Governos já não é suficiente. Também é necessária a funcional, ou seja, a que deriva de uma capacidade técnica para entender e dominar as soluções que os problemas de dimensão catastrófica demandam.
A tecnocracia não somente é a consequência da ineficiência da política e dos políticos tradicionais, como também é o corolário lógico da ruína ideológica que provocou a Grande Recessão do Século XXI
Entramos em uma nova era da política democrática na qual a representatividade constitui somente uma parte da legitimação para o exercício da gestão pública. O sistema requer também uma capacidade técnica dos seus dirigentes. Trata-se de conseguir um novo biótipo político: aquele que acumule em seu ser a dupla legitimação, a representativa e a funcional, embora a segunda somente possa ser comprovada posteriormente –por meio dos seus resultados–, mas que fica circunstancialmente registrada pelo caráter tecnocrata do gestor público.
A tecnocracia não somente é a consequência da ineficiência da política e dos políticos tradicionais, como também é o corolário lógico da ruína ideológica que provocou a Grande Recessão do século XXI. Pareceria que não há receitas ou soluções alternativas para o tratamento da crise e sua eventual superação. A socialdemocracia ficou fragmentada na UE porque não cristalizou uma saída “das esquerdas” para a crise, porque não há registro de que o keynesianismo dos partidos progressistas faça parte da solução, mas sim do problema, de tal forma que, embora seja paradoxal, as receitas de resoluções mistas e às vezes contraditórias, que somente Governos tecnocráticos e sem discurso político são capazes de aplicar, parecem funcionar. Reduzir benefícios sociais e diminuir a dimensão do Estado do bem-estar –política tipicamente liberal– se compadece sem solução de continuidade com incrementos da tributação direta e indireta –política de característica socialdemocrata–, sem que surjam conflitos ideológicos. O importante já não é a coerência com os parâmetros que definem modelos de esquerda ou de direita, mas sim se as decisões são ou não eficazes.
Aqui é onde surge outra grande questão: o que é a eficácia? Novamente as respostas da política tradicional –ideológica– e a social –pragmática– voltam a divergir. Talvez seja eficaz controlar a inflação, diminuir o desemprego, baixar os encargos fiscais, reduzir o déficit e alcançar taxas de crescimento sustentável. A controvérsia ideológica se fundamenta nos meios para alcançar estes fins, porque as opções de esquerda e as de direita diferenciam-se na medida em que também se diferenciam os valores individuais e coletivos que defendem. No centro do debate se encontra a sustentabilidade do Estado do bem-estar com a universalidade de seus serviços básicos (educação e saúde, em particular) que o liberalismo –e os tecnocratas– acreditam que seja necessário reformular. Em suma, e por mais que se tente desviar-se da questão, a verdade é que as soluções técnicas incidem sempre –em um clima de assepsia ideológica– sobre o modelo do Estado prestador de serviços.
A impugnação ideológica da tecnocracia baseia-se no fato de que, amparada em uma suposta neutralidade com relação às opções de esquerda e de direita, pretende dimensionar o Estado a partir de uma viabilidade que poderia ser conseguida somente em troca de um maior ajuste nas despesas não produtivas das Administrações Públicas, uma redução dos serviços que oferece aos cidadãos e um maior esforço dos cidadãos no financiamento desses serviços, seja pela via fiscal, seja, sobretudo, mediante contribuições individualizadas pelo gozo de seus benefícios (co-pagamento de saúde e justiça; mais as taxas pela utilização dos bens de domínio público; maior aumento de tarifas e receitas parafiscais semelhantes).
O Governo espanhol presidido por Mariano Rajoy, o primeiro eleito na zona do euro depois da crise da Grécia e Itália, está testando esta miscigenação técnico-política
Em termos gerais, o que foi exposto constitui, atualmente, o estado da questão. Apenas isso, porque ainda está para se provar que a tecnocracia recuperada seja, efetivamente, algo além de um remédio temporário e excepcional. No entanto, parece definitivo que embora seja um retrocesso à política e aos políticos tradicionais, e os mercados voltem a estar submetidos a órgãos reguladores, os gestores públicos deverão perder sua intensidade ideológica para ganhar margem de atuação e, ao mesmo tempo, deverão incrementar as suas qualidades técnicas.
O Governo espanhol, presidido por Mariano Rajoy, o primeiro eleito na zona do euro depois da crise da Grécia e Itália, está testando esta miscigenação técnico-política. Todos os membros do Gabinete exibem importantes trajetórias acadêmicas e profissionais, enquanto seu perfil ideológico, exceto em casos muito concretos, fica em segundo plano. A via espanhola é a terceira entre a via estritamente política e a via estritamente tecnocrática. Vamos lhe dar tempo para comprovar se essa combinação funciona. Para tanto, terá que ser, inquestionavelmente, eficaz.