Como contar minha verdade? A oportunidade renovada
Cunqueiro (Álvaro, 1911-1981) relata, em sua compilação de artigos intitulado Viagens imaginárias e reais, sobre a existência, nos tempos do rei francês Luis XIV, de um chamado “Gabinete de falsidades”, no qual, sob a direção de seu ministro da Fazenda, M. Colbert, cronistas de renome se dedicavam a escrever descrições fantásticas de países inexistentes nas costas da África e da Ásia. Uma vez descrito o país e feito o inventário de suas riquezas naturais, sempre enfatizando a docilidade dos indígenas e a generosidade de seus monarcas, passava-se a fazer propaganda de tal achado para levantar investimentos. Com o dinheiro obtido, na realidade se financiavam expedições a outros países da África Ocidental e do Oriente, altamente hostis e perigosos. O ilustre jornalista e escritor galego nos prova, assim, que a tentação de substituir a realidade por meio de apelos à emoção e às crenças pessoais, que é o que o blogueiro David Roberts definiu como pós-verdade, é tão antiga quanto a humanidade.
A tentação de substituir a realidade por meio de apelos à emoção e às crenças pessoais – a pós-verdade, segundo David Roberts – é tão antiga quanto a humanidade.
Mas se a pós-verdade não é nova, tampouco é real. O sufixo “pós” nega a própria essência do conceito todas as vezes que vem indicar-nos que estaria se passando a estados que primam pela verdade. Ou seja, que no mundo político, econômico ou social, o que antecedeu o momento no qual Roberts idealizou o termo pertenceu ao tempo da sinceridade. Alguém acredita nisso? Ainda existem ingênuos que defendem a veracidade das afirmações de Bush filho sobre as armas do Iraque ou as de um Zapatero negando a ferocidade da crise econômica ou ainda as promessas falsas ou discursos mobilizadores de tantos e tantos nas últimas décadas? A resposta é óbvia: não deveriam existir, ainda que… cuidado! De tanto associar a pós-verdade com os Trump, Farage e outros tantos da mesma espécie, corremos o risco de acabar lavando a imagem de centenas ou milhares que os precederam no uso de suas artimanhas, ainda que ignorassem que esta se chamava pós-verdade. Para eles, eram simplesmente “mentiras”, “manipulação” e “demagogia”.
Não menor, outro risco é acreditar que a culpa para o triunfo das verdades alternativas, como definiu a atual conselheira do presidente Trump, Kellyanne Conway[1], é atribuível exclusivamente aos seus praticantes. No ambiente midiático, político, educacional e social em geral foi estabelecido o imprescindível abono para seu surgimento como fenômeno. A degradação progressiva dos argumentos abriu as portas para a frivolidade, para a inconsistência e a falta de rigor. À medida que enchemos a boca de conceitos como a transparência, interação ou ética, o fluxo da comunicação atravessa um vale no qual só o descrédito de todo o racional habita. E existem responsáveis. São os meios de comunicação que, por causa da profunda crise que os afetam, optaram pela desqualificação profissional de suas redações, trocando experiência e autoridade por precariedade laboral e baixos custos; que estão abandonando os critérios de seleção das notícias, baseados no interesse social, e substituindo-os pelo gosto das audiências (a ditadura do clique e do trendic topic); ou que tem estabelecido bandeiras – política ou empresariais – distantes do real interesse dos cidadãos. A consequência é o crescente ceticismo dos leitores, ouvintes ou espectadores que, diante da inanidade de suas referências, optam pela comodidade de validar apenas aquelas notícias que se ajustam às suas crenças ou desejos.
O ambiente midiático, político, educacional e social em geral trouxe o imprescindível abono para o surgimento, em nossa sociedade, do fenômeno da relevância das “verdades alternativas”.
Responsáveis também são as redes sociais, que junto a inegáveis contribuições positivas, estão, no entanto, provocando uma mutilação sem precedentes na qualidade dos conteúdos. O impacto rápido e impressionante substituiu o raciocínio; a frase marcante ou surpreendente vence qualquer ideia solvente que se contraponha a ela; o vídeo mata as palavras. Influenciadores, Youtubers, blogueiros monopolizam o espaço de qualquer perito ou autoridade, e o cidadão se rende, extasiado diante da força arrasadora da emoção. Para que se precisa, então, da verdade?
Neste cenário, cabe se perguntar o que podem fazer aqueles que desejam transmitir suas ideias ou suas ações, de forma inteligente, íntegra e honesta. Que opções têm para fazer chegar suas mensagens e que estas sejam ouvidas e aceitas. Desde já, o caminho não passa por adaptar-se à corrente da trivialidade, mas pelo caminho mais complicado e lento da geração de confiança. É fato que o sucesso da comunicação se baseia em adequar nossa mensagem ao contexto e utilizar o código aceito por nossos receptores, mas estas condições não implicam, necessariamente, no exercício de precarização do nosso conteúdo. Novas formas e múltiplos canais são, hoje, imprescindíveis para alcançar aqueles que desejamos ter como interlocutores – já não são apenas receptores passivos – como igualmente deve ser o intercâmbio de ideias positivas e fatos contrastáveis e verazes, que ajudam a construir um espaço de credibilidade benéfica àqueles que participam do diálogo.
Da própria natureza da rede florescem oportunidades de comunicação que, por vezes, não aproveitamos, por aplicar em seu uso as mesmas regras que utilizávamos com as mídias massivas. Já não é suficiente declarar a veracidade de nossas mensagens para assegurar seu crédito; algo que se supunha garantido, por sua mera publicação em um veículo informativo. É mais importante do que nunca trabalhar a partir da fonte, desde a comunicação corporativa, na robustez dos argumentos que queremos tornar públicos, implantando uma disciplina firme de verificação; mas, também, em nossa capacidade de responder aos vários apelos que podem surgir nas conversações on-line. E isso é inerente à natureza da Internet, porque empoderou todos os indivíduos para acompanhar a um vasto fluxo de informação (e desinformação), e compartilhá-lo, de forma incrementada, por meio de suas conexões pessoais nas redes sociais. Um acesso à informação e capacidade de difusão antes restrita a a poucos atores: meios de comunicação, organizações sociais e administrações públicas.
Veracidade e responsabilidade (que vem de “responder”) sempre foram requisitos éticos da comunicação corporativa, mas agora, além disso, tornaram-se condições práticas para o exercício da função empresarial. Converteram-se em obrigações urgentes, que estão se movendo para transformar as próprias empresas, introduzindo, em alguns de seus processos e recursos, diretrizes próprias dos meios de comunicação (com que diz respeito à veracidade) ou das entidades sociais (no que diz respeito à responsabilidade). Grandes empresas de consumo, como a Red Bull ou Lego, converteram-se em grupos de comunicação. E outras marcas emergentes, como a Whole Foods ou Tesla, têm construído seus modelos de negócio sobre causas mobilizadoras, como a alimentação orgânica ou a mobilidade sustentável, respectivamente.
Veracidade e responsabilidade converteram-se em obrigações urgentes, que transformam as companhias, inserindo nelas pautas próprias dos meios de comunicação ou das entidades sociais.
Mas, além destes casos específicos, as tendências apontam que o fenômeno da pós-verdade, acelerado pela explosão tecnológica, também está encontrando respostas em profundas mudanças das organizações, que vão muito além das técnicas e formatos de comunicação (storytelling) e têm muito mais a ver com as formas e experiências de interação com seus grupos de interesse (storydoing).
[1] El País, Donald Trump nomeia sua diretora de campanha conselheira presidencial.