Práticas empresariais corruptas: uma análise da governança corporativa e propostas de prevenção
Observamos como certos eventos de corrupção, financiamento ilegal da política e o tráfico de influências converteram-se em discussão pública no Chile. Estes fenômenos anômalos e repreensíveis decorrentes do financiamento privado e irregular da atividade política pode assumir diversas formas, tais como o suborno, o envio de brindes para as iniciativas relacionadas a, ou patrocinadas por uma autoridade pública, o tráfico remunerado – comércio – de influências políticas e lobby destinado a determinar a vontade de uma autoridade pública e a obtenção de lucros anormais em empresas privadas, com base no uso de informações privilegiadas de natureza administrativa (“Práticas Corruptas”).
A análise das Práticas Corruptas pode ser abordada a partir de diferentes ângulos, entre os quais também se deve incluir o das pessoas jurídicas privadas com fins lucrativos: a empresa. Entre o universo de entidades nesta categoria; por seu papel exemplar, magnitude e impacto no mercado de capitais, destaca-se a Sociedade Anônima Aberta (“SAA”).
No âmbito do SAA, a prática corrupta se insere no capítulo dos “Conflitos de Interesse”, embora não seja regulamentada como tal.
No entanto, é preciso considerar que os Conflitos de Interesse descansam na tensão existente entre, por um lado, os direitos do titular (o acionista), e por outro, dos administradores (o diretor), assunto conhecido como “problema da agência” que é, como sabemos, a pedra angular de toda a teoria da governança corporativa – corporate governance.
No contexto chileno, considerando a hiperconcentração de capital que o universo acionário evidencia em relação a um número muito limitado de acionistas controladores e/ou majoritários, a dicotomia do acionista vis-à-vis o diretor, não ocorre, mas reconfigura-se, tomando a forma de uma luta entre os interesses do controlador versus dos acionistas minoritários. O anterior é consequência de ter recebido a administração exercendo uma influência decisiva sobre os poderes da presente direção desta.
A análise das Práticas Corruptas pode ser abordada a partir de diferentes ângulos, entre quais também se deve incluir o das pessoas jurídicas privadas com fins lucrativos: a empresa
Esse assunto não pode ser ignorado, pois, notavelmente, a carga regulatória de obrigações e o padrão de cuidado ou diligência devida – fiduciary duties e due diligence – que a lei colocou sobre os ombros dos diretores, não se dá conta da presença imanente do controlador, que é, realmente, o mandante – principal – e o beneficiário último da governança corporativa. No entanto, a legislação chilena finge que o controlador não existe e que o gestor opera em um ambiente livre de qualquer influência determinante. Esta dicotomia entre a realidade jurídica e factual é, sem dúvida, um dos fatores que dificultam significativamente a perseguição de responsabilidades por parte dos acionistas minoritários e, por outro, exige do legislador adaptar-se a qualquer estratégia legislativa de conformidade, centrando-se no aumento da carga operativa dirigida contra diretores, a fim de aumentar os custos da conformidade legal.
Os Conflitos de Interesse nos SAAs foram abordados pela lei com um dossiê de dispositivos regulatórios que funcionam de maneira concatenada, como pilares da igualdade e controle[1]. No entanto, dado o contexto de hiperconcentração já mencionado, estes são complementados pela proibição estabelecida contra o controlador, de exercer os seus direitos em detrimento dos interesses dos demais acionistas – por exemplo, o minoritários.
Deve notar-se que o objeto único e absoluto das SAAs é o lucro, isto é, ganhar dinheiro, o máximo possível, dentro dos limites da lei. Então, os diretores só podem gerenciar a SAA para levar adiante atividades lucrativas que lhes permitam gerar a maior quantidade possível de dividendos a serem distribuídos entre os acionistas. Este princípio é a base de tudo e, analisado do ponto de vista amplo e a partir das políticas públicas, a atribuição generalizada desta finalidade de lucro é essencial para orientar os fatores produtivos à sua máxima eficiência e promover o crescimento econômico da Nação.
Então, em relação às Práticas Corruptas, isto pode ter dois efeitos esperados: (1) que a Prática Corrupta permita gerar melhores resultados para a SAA, ou (2) que envolva um mero desperdício de recursos sem justificação econômica capaz de reduzir o nível geral dos dividendos, afetando a prima facie de todos os acionistas.
No primeiro caso, a Prática Corrupta provocará uma quebra no comércio justo ou à livre concorrência, para o qual já existe um plano de controle na lei e que excede o âmbito da análise de governança corporativa.
No segundo caso, a análise é mais complexa, pois não pode entender-se que o conselho, supostamente independente, incorra em um risco que poderia afetar diretamente em seu patrimônio e reputação. Portanto, esta ação temerária só pode ser entendida na medida que a administração tenha um respaldo: a garantia e a instrução do controlador para realizar tal Prática Corrupta. Isto é, a Prática Corrupta é geralmente uma determinação do controlador ou sob a sua concomitância, executada materialmente pela SAA que financia o ato repreensível; ou seja, quem suporta por último o custo da Prática Corrupta é a base geral de acionistas e não apenas o controlador, mas o benefício da Prática Corrupta é capturada apenas pelo controlador.
Em suma, a execução de uma Prática Corrupta viola a função do lucro da SAA e, portanto, os interesses dos acionistas.
Como pode acontecer uma situação como esta descrita? Não existe uma lei que se oponha, preventivamente, a esse efeito anômalo?
Bem, devemos considerar que os diretores devem a toda a SAA e não aos acionistas que votaram para serem eleitos. Se nos apegamos com fervor ao que a lei diz, o controlador não pode influenciar a gestão, já que esta está delegada, de maneira autônoma e independente, a um órgão de administração: o conselho. No entanto, a mesma definição de controle na lei N° 18.045, de mercado de ações, fala de uma influência decisiva sobre a administração, o que seria incompatível com a estrutura jurídica instituída com base na Lei N° 18.046, sobre Sociedades Anônimas . Esta questão não é puramente acadêmica, pois a interpretação de ambas as regras exige um trabalho de exegese que sempre permitirão espaços vagos ou arbitrários, em cujos interstícios embalam as práticas anormais.
Para complicar um pouco as coisas, um fator adicional foi somado, alterando a análise precedente em sua base: existe ou não concordância entre o que a lei prevê como substância abstrata absoluta da SAA e o que a sociedade exige dela, atualmente, como resultado da sua evolução histórica?
No momento, parece que a matriz de demandas sociais a qual está submetida a SAA sofreu uma mutação que a fez deixar de ser uma unidade de geração de lucro, para transformar-se em conceito complexo e vago de entidade moral de responsabilidade cidadã ou responsabilidade social. Ou seja, tem emergido, gradualmente, uma concepção da SAA que a vai equiparando suas responsabilidades as de um indivíduo. Mesmo em seus empreendimentos mais modernos, a entidade moral é reconhecida como um verdadeiro cidadão corporativo.
Existe ou não concordância entre o que a lei prevê como substância abstrata da SAA e o que a sociedade exige dela, atualmente, como resultado da sua evolução histórica?
Como e quão razoavelmente justificadas e aprovadas deveriam ser estas atividades que se desviam do parâmetro lucrativo e que poderiam levar a uma redução significativa do nível de dividendos? Suponhamos que sem entrar totalmente na coisa pública, a SAA resolve, razoavelmente, favorecer uma iniciativa cultural ou social que tem um componente ou externalidade política; pois bem, a fronteira vai cada vez para mais longe e torna-se difícil distinguir onde precariamente se localiza a tênue linha entre a contribuição partidária e o compromisso social – ou seja, uma empresa de mineração financia uma iniciativa cultural infantil empreendida ou patrocinada por um senador.
É justo concluir que é muito difícil exigir “voto de castidade” à SAA para alguns propósitos, e demanda-la uma conduta de bom cidadão em outras, alegando uma mudança de circunstância ou cenário. A lei não pode ser abstraída e fazer tais distinções sem incorrer em graves iniquidades ou abrir espaço a potenciais evasões.
Então condenar a SAA por sua contribuição espúria à política, mas demanda-la uma integração ativa com as suas comunidades e ser socialmente responsáveis, não é, talvez, um olhar um tanto esquizofrênico?
Uma ou utra alternativa, e na ausência de uma jurisprudência que ajude a traçar um caminho de convergência, sou da opinião de que a lei tende a preferir uma opção profilática. Ou seja, explicitar na lei que os desvios de recursos fora do marco de razoabilidade exigido pela norma de responsabilidade dos administradores – para o qual deverá apresentar prova, mediante o estabelecimento dos administradores ad-hoc –, viola o fim lucrativo da SAA e que, tendo diminuído por este meio, os dividendos a serem distribuídos periodicamente pela SAA aos acionistas, qualquer um deles pode ser titular de uma ação de indemnização contra os administradores; ao que a facilitação da ação judicial será fundamental para a eficiência do modelo preventivo de Práticas Corruptas.
Do contrário, ao menos, deveria exigir-se da SAA, o estabelecimento explícito e antecipado de uma política de contribuição social e de responsabilidade, de modo que os gastos com arte, caridade, esportes e até mesmo atividades políticas sejam conhecidos e, talvez, também aprovados pelos acionistas para que depois ninguém reclame se o controlador decidiu financiar, com o caixa da SAA, seus interesses partidários em detrimento da minoria. Assim, os administradores também podem salvaguardar a sua responsabilidade e evitar demandas que façam sangrar a operação e as finanças da SAA.
[1] Confer: (i) estabelecendo um objeto (charter) ao qual é dirigida e subordinada a ação e administração da entidade e que tem, ao menos no Chile, um explícito foco no lucro; (ii) estabelecendo um padrão de cuidado aplicável aos administradores da SAA (diretores), que centra-se no lucro final, mantendo-os alheios aos interesses dos acionistas que promoveram sua nomeação, e que os compromete como devedores solidários em seu patrimônio pessoal; (iii) particularizando o padrão de cuidado em um catálogo explícito de condutas proibidas que são prejudiciais à sociedade ou a seus acionistas; (iv) exigindo um sistema de fiscalização da administração sofisticado, mediante a participação de comitês “independentes” de auditoria e controle preventivo do propósito específico e de empresas de auditoria externa; (v) estabelecendo um sistema de divulgação contínua e oficial de informações relevantes ao mercado e ao público em geral; (vi) exigindo o cumprimento de procedimentos de divulgação e igualdade (arm’s length) para a aprovação de contratos com contrapartes relacionadas à SAA, seus administradores ou controladores; (vii) proibindo e sancionando o uso de informações privilegiadas em negociações de valores mobiliários e de aproveitamento de posição dominante de mercado, no caso de utilidades; (viii) estabelecendo um sistema de demanda coletiva simplificada dos acionistas contra diretores que violam seus obrigações com a LSA; (ix) estabelecendo um sistema de publicidade e de oferta pública de compra de ações para situações de mudança de controle da SAA; e (x) introduzindo alterações jurídicas específicas às regras de resolução coletiva – super maioria – ligadas aos direitos de reembolso forçado de ações.