A reputação corporativa no processo penal
A Volkswagen, a gigante companhia automobilística alemã, enfrenta a pior crise de sua história após a descoberta e o reconhecimento de que instalou, em mais de 11 milhões de veículos movidos a diesel, um software que adulterava os resultados das medições de gases, para fraudar os controles estatais dentro e fora da Europa. Calcula-se que a queda no valor de mercado da empresa, somente até o final de setembro de 2015, foi superior a US$ 29 bilhões, e que o grupo deve enfrentar multas nos EUA que ultrapassam os US$ 18 bilhões. Em paralelo, o Departamento de Estado e Fiscalização americano, assim como o Ministério Público alemão, iniciaram as primeiras investigações que poderiam levar à imputação de acusações criminais contra a empresa e seus diretores por fraude contra o consumidor e delitos ambientais. A marca VW – o “carro do povo“, “feito na Alemanha” – está severamente danificada e os processos judiciais, que apenas começaram, aprofundarão o dano reputacional. A VW precisa de um plano de crise jurídico, financeiro e de imagem.
A relação entre o Direito Penal e a opinião pública, tão antiga quanto o próprio Direito Penal – o famoso “julgamento romano” contra Jesus de Nazaré foi a expressão disso –, adquiriu nos últimos anos uma outra dimensão, resultado da explosão informativa contemporânea. Diante de um fato jurídico ou litigioso, os meios digitais não tardam em transmitir em segundos ou escassos minutos, ao redor do mundo, se for o caso, imagens, comentários e opiniões em todas os idiomas que provocam um verdadeiro “julgamento midiático“, público e paralelo, com o mesmo poder que o maior ou menor interesse que o caso desperte na opinião pública. Neste julgamento público, como no marketing, antes das provas e dos argumentos, destacam-se as percepções, preferências, a conexão sentimental positiva ou negativa do consumidor da informação, que terminam por converter verdadeiros culpados em inocentes, inocentes em culpados ou simples culpados em mais culpados do que são. Dependendo das fortalezas do sistema de justiça de um país, juízes atuarão com maior ou menor independência, descartando ou adicionando ao sentido deste julgamento o chamado “quarto poder”.
O sistema de justiça ideal é aquele em que o juiz interpreta e aplica a lei, mas também seu fracasso é aceito e comunicado à comunidade, que é uma decisão justa e coerente com os valores da sociedade
No entanto, a justiça não é apenas justiça no sentido da aplicação estrita da lei, mas vai além ao requerer legitimidade. O sistema de justiça ideal é aquele em que o juiz interpreta e aplica os fundamentos do Direito, mas também sua sentença é aceita e comunicada à comunidade, como uma decisão justa e coerente com os valores da sociedade. Por esta razão, nos últimos anos, muitos estudos sobre a relação entre a imprensa e a justiça penal, a partir de abordagens jurídicas, filosóficas, sociológicas, psicológicas, econômicas, antropológicas e comunicacionais, entre outras, todas elas destinadas a elucidar os limites, caso estes existam, de como a sociedade deve ou a pode aceitar, entre o sentido de uma decisão judicial e da demanda pública. E é onde a tomada de decisão pelo juiz, como o jurista espanhol Manuel Atienza observa, não obedece unicamente a razões de justificativa legal (“contexto de justificação“), mas também às chamadas razões explicativas ligadas às ideias, crenças e valores culturais de quem decide (“contexto da descoberta“), âmbito em que é inevitável o julgamento público, a percepção social, cumprindo um papel fundamental.
Neste cenário, especialmente em áreas onde a responsabilidade penal das empresas (EUA, Reino Unido, Espanha, França, Chile) é aceita, as regulações geram importantes incentivos para que as empresas se autorregulem e administrem o risco de cometer delitos diante dos chamados sistemas de conformidade ou compliance, ou seja, programas de prevenção da atividade criminosas empresarial, a fim de prevenir a prática de crimes de corrupção, lavagem de dinheiro, fraude, etc., como forma de mitigar o risco patrimonial, legal e reputacional, o dano à marca, derivados de uma potencial condenação. E mais, porque o simples fato de uma empresa ser investigada criminalmente, traduzida na expressão “sentar-se no banco dos réus”, pode afetar seriamente uma marca, mas além de sua inocência ou culpa, como no famoso caso da Arthur Andersen LLP, que embora finalmente absolvido pelo Supremo Tribunal dos Estados Unidos, em 2005, pelo crime de obstrução da justiça, ao final do julgamento a empresa estava falida, não havia forma de continuar, dado o enorme dano reputacional sofrido durante o julgamento.
Mas os sistemas de conformidade tampouco são a panaceia. Muitas vezes, após a revelação de um caso, o corporate compliance parece ficar reduzido a um mero instrumento de marketing ou cosmética corporativa. Assim ficaram marcadas, por exemplo, as primeiras condenações do caso Petrobras, empresa estatal brasileira em que, como no caso da multinacional alemã Siemens, a existência de medidas de conformidade, códigos de conduta e sistemas de denúncias internas que agora se supõem de simples fachada ou para cumprir mera formalidade não impediram que seus altos diretores negociassem com particulares nas contratações e licitações, em troca de somas milionárias de dinheiro, que durante anos foram maquiadas na contabilidade como pagamentos por serviços diversos às empresas off shore, e lavadas em complexos esquemas de engenharia financeira. Justamente nos limites do compliance, a análise de sua capacidade de rendimento, fica a pergunta de por que uma empresa alemã como a Siemens não foi capaz de cometer atos de corrupção na Alemanha, mas sim na Argentina, Bangladesh e Venezuela, ou por que a Volkswagen, apesar de seus altos e prévios sistemas de conformidade, e depois de ter enfrentado acusações particularmente graves ao longo de sua história, como o uso de prisioneiros em suas fábricas durante o nacional-socialismo, agora se viu envolvida no caso do software de controle de emissões .
Muitas vezes, após a revelação de um caso, o corporate compliance parece ficar reduzido a um mero instrumento de marketing ou cosmética corporativa
Contudo, como disse Alejandro Romero, sócio e CEO para a América Latina da LLORENTE & CUENCA, a respeito de uma defesa midiática e judicial em que atuamos, em 2004: “diante de um caso penal midiático, os advogados não podem comunicar o que não existe”, ou seja, devemos aprender a comunicar, a comunicar coisas reais, a “publicizar” ou vender a nossa verdade. Esse é o caminho não apenas para proteger a marca de uma empresa, mas também para ganhar o caso, apoiado na legitimidade requerida por juízes para resolver com justiça e com base no Direito. Em algumas ocasiões, como Sun Tzu escreveu no século IV a.C., “a guerra é uma competição moral que é ganha nos templos antes do campo de batalha“.