Peças de um grande mosaico universal
O mundo não está conectado apenas por meio do comércio e da força política. A história das civilizações é, fundamentalmente, a história da cultura dos povos, da sua migração e do intercâmbio de pensamento e das formas de arte que a expressam. Uma boa parte desta plural e evolutiva história da cultura e da arte são preservados nos museus. Cada um de nós guarda um fragmento do relato geral das civilizações, como peças de um grande mosaico universal. O desejo de compreender o mundo, de mapear sua memória, é o que inspirou a criação destes tipos de instituições públicas, herdeiras da ilustração, no alvorecer da nossa época contemporânea.
Hoje, em um mundo globalizado, os museus seguem servindo à mesma dupla missão primordial, que é a de conservar, para as futuras gerações, o testemunho do passado e, ao mesmo tempo, democratizar sua valorização e prazer entre os cidadãos. Nossas instituições não mudaram muito. Por outro lado, o que mudou radicalmente foi a sociedade e a forma de interagir com os museus.
O museu é reflexo da história, mas também das aspirações contemporâneas de uma sociedade. Assim temos entendido o Museu do Prado, conduzindo sua recente ampliação e modernização em direção à adaptação de uma instituição quase bicentenária, para responder às demandas de um público crescente e cosmopolita, desejoso de celebrar a excelência da arte que o museu conserva e conhecer a história e o pensamento escondido em cada obra.
O que mudou radicalmente foi a sociedade e a forma de interagir com os museus
A complexa teia de relações que compõem nosso atual mundo globalizado e hiperconectado também tem afetado a missão dos museus hoje em dia, forçados a assumir novas responsabilidades. Depois da tradicional missão de cuidar dos testemunhos herdados do passado, estes assumiram outra, que é a de compartilhar e ampliar a atividade do museu para fora de seus muros.
O museu tradicional, fisicamente localizado em uma cidade e em um edifício, identificado com o progresso cultural e artístico de uma nação, passa a ter que reconsiderar a sua original identidade local para abraçar uma paralela e mais ampla identidade universal. É extremamente interessante observar as diversas soluções que foram sendo testadas nos últimos anos por diferentes museus diante desta nova realidade. Não há um museu igual ao outro e, portanto, as fórmulas testadas são diferentes.
Diferente é, por exemplo, a resposta dada pelos museus de arte contemporânea a este expansivo novo modelo de diplomacia cultural. Eles têm uma maior liberdade, e certamente álibi conceitual, para ensaiar esta operação na rede. De fato, sem ir mais longe, uma das primeiras e mais divulgadas tentativas de integrar o mundo global com os museus foi a operação de expansão testada em nosso país, com a criação de uma sede do Guggenheim, em Bilbao.
Mais dificuldade têm, porém, os museus históricos que, como disse, construíram seu prestígio sobre sua imutável localização cultural e física e nos quais a principal diferença consiste na particular história do país e na identidade nacional que impregna, de forma indelével, as coleções de cada um. É uma questão de perspectiva histórica, que não pode ser a mesma para um inglês, um francês, um espanhol ou um chinês. A relação do Museu Britânico com o mundo é diferente daquela mantida pelo Louvre e, claro, pelo Prado até a do Museu Nacional de Pequim.
As galerias nacionais nascidas dos ideais iluministas são depósitos privilegiados da memória coletiva dos diferentes Estados-nação, formadas pelos retalhos de sua história, unidos pela culta tradição colecionadora de cada um de nossos países e, mais recentemente, pela revisão acadêmica que nossas instituições propuseram à história particular e universal da arte que conservam. Este ponto de vista específico não pode ser ignorado quando falamos de estratégias de diplomacia cultural que cada um pretende desenvolver.
As galerias nacionais nascidas dos ideais iluministas são depósitos privilegiados da memória coletiva dos diferentes Estados-nação
Para ser mais específico, a perspectiva latino-americana, por exemplo, pode não ser igual ao Prado, assim como o museu do Louvre aos museus em Berlim. Nossa história comum nos obriga uma reflexão mais urgente, profunda e complexa, por sua vez. Criar pontes entre as instituições museológicas do espaço ibero-americano da cultura é, sem dúvida, uma das prioridade para nós e, ao mesmo tempo, um caminho para enriquecer a visão inevitavelmente parcial que cada um tem da história e da arte. Superar, em definitivo, as não raras vezes conflitantes formas de compreender os grandes fenômenos culturais e artísticos de uma ou outra parte do Atlântico. Entender, para ser ainda mais concreto, a singular forma de criação da arte barroca colonial no mundo e a sua relação multifacetada com modelos hegemônicos da arte europeia exige uma generosa disposição para compartilhar o conhecimento e as perspectivas mais diversas. Este talvez seja um dos assuntos mais interessantes oferecidos a nós no caminho da internacionalização da cultura e da arte.
Para começar a caminhar nesta direção, temos de livrar-nos antes de alguns de nossos preconceitos. Reconhecer, por exemplo, que a nossa posição hegemônica no globo decaiu vários séculos atrás. Enquanto as potências europeias modernas colonizaram o mundo, nosso país perdia suas últimas possessões ultramarinas. Depois de perder o poder, o que nos resta é uma gloriosa herança, nada mais e nada menos que um dos mais diversos e ricos patrimônios históricos e artísticos que preserva qualquer nação do mundo, incluindo, claro, a nossa língua comum.
O poder político converteu-se em poder cultural. Um exercício de orgulhosa sinceridade que nos permitirá, sem perder a nossa privilegiada perspectiva histórica, participar ativamente do curso de nosso trajeto em direção ao expandido mundo atual.