A Pátria do Idioma
Muito se tem escrito e dissertado sobre o valor real e metafórico da língua espanhola. O fato de que, na atualidade, é uma língua falada por mais de quinhentos milhões de pessoas, de acordo com relatórios do Instituto Cervantes, tem moldado sua preponderância mundial, evidente em potências como os EUA. O interesse em aprender espanhol para aqueles que não a têm como língua materna deve ser diretamente proporcional ao nosso, de difundi-la com rigor e amplitude de visão, fato que nem sempre acontece. A banalização da nossa sociedade desvalorizou um idioma, incluindo nos meios de comunicação considerados cimentos da mesma, assim como os acadêmicos, literários e meios jornalísticos, até níveis que puseram em perigo os valores com os quais a Real Academia, por exemplo, foi criada: “Limpa, correta e esplendorosa”. Disto começam a tomar consciência os reais acadêmicos, e a prova é que os últimos congressos da língua foram realizados em cidades do continente americano como Valparaiso, Chile, em 2010, Cidade do Panamá, em 2013, e a próxima, prevista para março de 2016, em San Juan, Porto Rico. Não é por acaso, dada a força da Associação das Academias da Língua Espanhola (Asale), fundada sobre o peso dos seus numerosos membros e falantes, com uma presença, não apenas migratória, mas de fato e de direito, nos EUA.
Ruben Darío e Luis Cernuda, grandes autores versaram o espanhol como uma pátria comum
O fluxo da linguagem não deve ser tratado como um “bem imaterial”, pretexto ornamental de Exposições Universais, encontros macroeconômicos, político ou internacionais, mas como uma realidade tangível. Uma mudança importante poderia ser o fato de que nestes encontros contemplassem especialistas em cultura e humanidades. Bem observada, a língua constitui uma “Pátria”, não sujeita às mudanças e flutuações de fronteiras ajustadas a acordos e transformações históricas, mas uma realidade de pensamento, um modo de compreender, comunicar e interpretar o mundo.
Um dos primeiros intelectuais a compreender isto foi o nicaraguense Rubén Darío, pai do movimento modernista, verdadeiro construtor, através da linguagem, de mais pontes e áreas de progresso que muitos arquitetos seriam capazes. Este escritor cosmopolita e jornalista, falava com clarividência do idioma, seu e nosso, como uma verdadeira identidade em seu livro “Viagem à Nicarágua”. Advertia, em 1898, após as perdas de colônias espanholas, como Cuba e Filipinas, de como a linguagem, referindo-se ao inglês frente à língua espanhola, era também uma forma de colonialismo, de domínio cultural. Tinha razão, também nisto, a menos de um ano do centenário de sua morte.
No entanto, foi o professor e poeta Luis Cernuda, pertencente à chamada Geração de 27, exilado nos EUA, quem melhor definiu o conceito de “A Pátria do Idioma”, ao passar, nos anos cinquenta do século XX, ao novamente dar aulas em sua língua materna, o espanhol, no México. Em um de seus últimos livros, “Variações sobre o tema mexicano”, medita, poeticamente sobre a língua e seus âmbitos; sua dimensão universal e como a estrutura do pensamento de uma linguagem particular recria o espaço real e a identidade. Neste livro raro, um livro de poemas em prosa, mas também em tom meditativo e quase filosófico – não esqueçamos que Cernuda pertence à escola de José Ortega y Gasset -, diz: “Como não sentir orgulho ao ouvir nossa língua falada, eco fiel e ao mesmo tempo expressão autônoma, por outros povos do outro lado do mundo? Eles, conscientemente ou não, gostem ou não, com os mesmos sinais de sua alma, que são as palavras, mantêm vivo o destino de nosso país, e teriam que mantê-lo mesmo depois que ele deixasse de existir”. Esta profunda reflexão emitida há quase setenta anos por Cernuda foi continuada na essência pela publicação Cadernos Hispanoamericanos, especialmente em períodos que vão desde a sua fundação, com Pedro Laín Entralgo e Luis Rosales, até o final da direção do poeta Félix Grande. Graças a eles debateu-se a mesma ideia de forma rigorosa e construtiva, de ambas as margens transoceânicas do idioma, com reflexões de pensadores e criadores tão credenciados como Octavio Paz, entre outros.
A Flórida e sua Universidade Internacional são agora o epicentro do idioma espanhol nos Estados Unidos
Atualmente, trabalha-se séria e apaixonadamente nesta ideia em Miami, na FIU (Florida International University), que, em um curto espaço de tempo e com escassos recursos, tornou-se uma das dez melhores universidades norte-americanas, e que conta com o maior número de estudantes hispânicos do país. O próprio presidente Obama, em fevereiro deste ano, tornou-a em centro da ação de seus discursos sobre a política de imigração e de relações com a comunidade hispânica. O mais curioso de tudo é que esta Universidade baseia o seu prestígio no ensino e no estudo das humanidades, especialmente da Língua e da Literatura espanhola, da História e da cultura, como fundação e ancoragem para construir a sociedade. Este esforço parte, em grande medida, do desejo de professores como a Catedrática de História, Aurora Morcillo, que trabalha na criação de propostas como a “Iniciativa para os Estudos da Espanha e do Mediterrâneo”, que visa promover uma plataforma para explicar as relações da cultura e do mar, da história da Espanha, ligando-a à própria história da América. Dela, participaram figuras como José Varela Ortega, presidente da Fundação Ortega y Gasset, contando com apoio dos atuais reis da Espanha, que a visitaram no ano passado, quando ainda eram Príncipes das Astúrias. No entanto, é da responsabilidade de todos, de maneira transversal, a partir de todos os âmbitos possíveis, intelectuais, empresariais, políticos e econômicos, que esta realidade tangível, esta pátria do idioma, continue crescendo, saudável e poderosa, contudo preservada e renovada. Isso conforma nosso mundo, largo e de muitos limites, e a grandeza secular da nossa língua. Uma base da realidade e do progresso. Quem o leu (e viveu), sabe.