Diplomacia e governança global
M over-se na ficção intelectual da
viagem através do tempo como um efeito combinado da leitura pausada, por um lado, do elegante The Crimean War (2011) do brilhante historiador inglês Orlando Figes e do seguimento febril, por outro lado, da atual crise na Ucrânia, apenas para citar alguns exemplos, através das fotos da reunião em Genebra entre o Secretário de Estado dos Estados Unidos da América, os ministros das Relações Exteriores da Rússia e da Ucrânia e da alta representante da UE para Assuntos Externos e Política de Segurança distribuídas através da conta do Twitter do primeiro, no início da reunião, ou das posições do presidente do governo da Rússia, Medveded, através do seu mural do Facebook ou dos planos operacionais do responsável pelo conselho de segurança nacional ucraniano através, novamente, da sua conta no Twitter ou no seguimento em tempo real das notícias emitidas por meio dos canais de socialização da BBC, Russia Today ou CNN, por exemplo, é uma demonstração fascinante para comprovar como o exercício da diplomacia mudou tanto e como o mundo mudou pouco, embora alguns dos atores do conflito atual sejam, obviamente, diferentes daqueles de 150 anos atrás, enquanto muitos dos interesses estratégicos nacionais em jogo permanecem inalterados.
E, entre as ironias desse exercício, destaca-se a de que a Páscoa deste ano coincidiu, para o ritual ortodoxo e para o ritual latino, na mesma data em que em 1846, data do início da narração de Figes, com marco febril de tais celebrações coincidentes com Jerusalém de fundo.
A arte da mediação e da representação parece agora mais necessária do que nunca em função da concatenação das mudanças globais.
Sem dúvida, a diplomacia é a arte da representação, da negociação, da proteção e da promoção dos interesses de um Estado perante terceiros. É uma atividade profissional sólida e tão antiga quanto as relações não só entre as nações, mas também entre as culturas.
A arte da mediação e da representação parece agora mais necessária do que nunca em função da concatenação de mudanças no ambiente. A atual crise tem demonstrado a crescente interdependência econômica e o impacto das relações econômicas internacionais. Surgiram mais e mais atores no cenário internacional. Não apenas os BRIC ou os duplos MIT, mas também cidades, empresas e cidadãos participam do processo de tomada de decisões.
Os mercados são dinâmicos, e o tempo se acelera de tal forma que, para os recém-chegados, surgem oportunidades para alcançar, rapidamente, cargos de liderança.
Um aspecto fundamental dessa globalização é que os recém-chegados não querem esperar seu tempo histórico, e sim querem alcançar posições de liderança na Europa ou nos Estados Unidos queimando etapas.
Com certeza, a revolução das tecnologias da informação e da comunicação tem contribuído para essas mudanças: deu poderes à cidadania, criou novos atores globais e deixaram de intermediar numerosos processos de interlocução, negociação, influência e tomada de decisões.
Diante desta situação, é hora de pensar em como será desenvolvida a diplomacia do século XXI.
Os Ministérios das Relações Exteriores perderam o monopólio da ação externa, embora seus meios e sua experiência no que diz respeito a esta questão serão ativos essenciais na implantação das estratégias dos Estados. Os diplomatas, que precisarão possuir novas competências profissionais adaptadas ao ambiente digital e competitivo, continuarão com o seu trabalho. Muitas atividades requerem a sua presença e seu contato direto: a atenção consular, a diplomacia convencional, as relações bilaterais, a cooperação para o desenvolvimento, a ação cultural e muitas mais.
Três características surgem no horizonte mais imediato das necessidades do trabalho de representação e influência das nações: o imediatismo, a visibilidade e a interação direta dos cidadãos. A recente crise na Ucrânia, a criação do ZunZuneo em Cuba e o debate sobre a governança global da internet refletem uma nova agenda de atividades diplomáticas, em suma, um salto qualitativo na diluição das fronteiras e das relações internacionais.
A diplomacia em rede requer um questionamento estratégico sobre os recursos, processos e, acima de tudo, valores.
A literatura acadêmica já aceitou a ideia da diplomacia em rede, ou seja, aquela que expande o número de atores e questões próprias da diplomacia e da configuração do poder no cenário internacional.
Existem muitos exemplos para isso: a União Europeia e o Conselho da Europa, mas também a gestão da cooperação para o desenvolvimento, a saúde pública, a mudança climática, a contraespionagem, a promoção dos direitos humanos, a defesa da liberdade de expressão e as relações científicas precisam das redes internacionais.
A diplomacia na rede é aberta por definição, e requer o compartilhamento de interesses mútuos (mais transparência), os instrumentos (parcerias público-privadas), as habilidades (cooperação em vez de imposição) e os procedimentos (fóruns de diálogos, acordos não regulamentares).
Todos os objetivos de política externa podem aproveitar as redes para atingir seus objetivos.
Observamos a rede dos países nórdicos na defesa do seu modelo econômico e cultural. Foi articulada a rede de países que desejam uma melhor governança da internet, com o Brasil e a Suécia à frente. Outras redes diplomáticas procuram compartilhar recursos e reduzir custos, como a estrutura do serviço externo europeu. As Cúpulas Ibero-americanas são um arquétipo das redes de empoderamento, que precisam repensar o seu modelo fechado e abrir passagem a outro mais aberto. E tantos outros exemplos.
Reputação, influência e credibilidade são agora os pilares da atividade diplomática.
Em suma, a diplomacia em rede requer um questionamento estratégico sobre os recursos, processos e, acima de tudo, valores. De uma forma metafórica, são necessárias embaixadas com menos cabos, porém mais conectadas. Porque as relações com a sociedade, em suma, as redes e o capital social são as verdadeiras fontes de competitividade e de diferenciação; portanto, da liderança no século XXI. Dificilmente, uma representação diplomática isolada do seu ambiente pode gerar valor em um número crescente de questões.
Em contraposição à rede, ainda persiste a diplomacia de clube, que é aquela que representa e negocia a portas fechadas, com outros instrumentos mais precisos ou bilaterais.
As negociações do Quarteto sobre a Síria ou a atividade do Conselho de Segurança das Nações Unidas são bons exemplos disso.
Portanto, não se trata de enfrentar um ao outro, e sim de aproveitar as oportunidades de inovação nas relações diplomáticas. Neste contexto, a diplomacia pública é uma fonte de competitividade e diferenciação.
A diplomacia digital também merece uma menção especial. Provavelmente, porque não existe. O que existe é uma diplomacia que se desenvolve no meio digital e usa a internet e os novos meios de comunicação para atingir seus objetivos.
É interessante para eles, porque a mudança demográfica é lenta, porém definitiva: 45% da população mundial tem menos de 26 anos. Em segundo lugar, porque as redes criaram novos influentes, cuja ação se manifesta por meio de telefones celulares, blogs ou Twitter. Ficar fora dessa conversa online enfraquece as possibilidades. Em terceiro lugar, porque a agenda de questões digitais adquire um perfil geoestratégico cada vez maior. A neutralidade da rede, a proteção dos direitos individuais e a segurança cibernética são questões que requerem uma tomada de decisão. Esses desafios não podem ser ignorados.
A nova diplomacia também gera novas incertezas.
O ambiente tem gerado um dilema insolúvel. O dilema entre a liberdade e a segurança é tão antiga quanto as relações internacionais. O segundo dilema é o que obriga a alcançar o equilíbrio necessário entre transparência e confidencialidade. Os vazamentos, o jornalismo de pesquisa, o empoderamento dos cidadãos e os serviços de inteligência competem pelos mesmos interesses. E isso não combina com a espionagem massiva. O terceiro elemento é a liberdade de expressão. Estamos dispostos a proteger jornalistas que trabalham online contra regimes autoritários? Podemos publicar e republicar caricaturas que, em um país, são ofensivas, e, em outros, são animus iocandi? Em sistemas abertos, a crítica é a base da opinião pública. Essa questão nos obriga a escolher entre uma das duas opções e priorizar uma das três variáveis. É uma aporia.
Os sistemas democráticos devem responder com base nos seus valores e adaptar as soluções à complexidade do cenário mundial interconectado.
Seguindo a ideia da diplomacia em rede, os Ministérios das Relações Exteriores têm que aceitar que não podem controlar o tempo e os processos. As hierarquias devem ser combinadas com as virtudes das redes. Se aceitarmos que compartilhar é poder, o Ministério deve se transformar no principal ator dos assuntos e das relações internacionais. E isso diz respeito à atividade e ao poder regulamentar, mas é preciso repartir e redistribuir as responsabilidades e as funções. Navegar na rede isoladamente não faz sentido.
O mesmo pode ser dito dos diplomatas, cuja atividade, atualmente, é mais pública do que nunca. Eles usam o Twitter, estão presentes nas redes sociais e souberam personalizar a atividade internacional. São os novos facilitadores da conversa e são excelentes representantes dos interesses dos Estados perante terceiros. Até agora, no modelo clube, conhecíamos as dinâmicas e o âmbito das suas funções. No entanto, agora, é preciso pensar em como continuar com o mesmo trabalho em um ambiente aberto e competitivo.
Existe espaço para a inovação, por meio da ampliação das capacidades de analise e habilidades. Recentemente, o The Economist divulgou uma reflexão do embaixador britânico Tom Fletcher: “Poderíamos estar melhor preparados para a primavera árabe se tivéssemos descoberto o hashtag #Tahrir antes?” Esse questionamento reflete bem a necessidade de saber ouvir os novos circuitos de informação.
Reputação, influência e credibilidade são agora os pilares da atividade diplomática. É hora de pensar em como o contato pessoal será reconfigurado, no qual se estabelece a confiança e se demonstra a qualidade dos contatos perante o novo ambiente. Seguindo a expressão afortunada de Edward R. Murrow, nos últimos três pés, jogamos todo o trabalho. E esses últimos três pés têm agora sapatos novos: telefones celulares, redes sociais, fóruns não regulamentares, canais de televisão internacionais e tantos outros desafios.
Em suma, vivemos tempos interessantes para a diplomacia. Como afirmou Cernuda, precisamos passar do desejo para a realidade.