Simplificações forçadas para as decisões complexas: uma armadilha?
Quando comecei no meu primeiro emprego, há mais de vinte anos atrás, um gerente muito experiente me disse: aqui é preciso de um comitê para aprovar a compra de uma dúzia de lápis, mas ninguém controla se esta válvula se abre e se desperdiça milhares de toneladas de um produto valioso. Essa conversa foi parte da indução à qual fui submetida ao ser nomeada como “tecnóloga” em uma refinaria de petróleo de uma empresa multinacional. Naquela época, tive dificuldade para entender o contexto do comentário, mas certamente teve o efeito que o meu mentor esperava: despertou em mim um sentimento de enorme responsabilidade para questionar a abertura e fechamento das válvulas a partir desse dia.
A anedota é uma ilustração clara de como alguns riscos residem no coração técnico-operacional dos negócios, cuja existência e natureza escapam do auditor jurídico ou financeiro. Exige que aqueles que desempenham as funções de controladores contem com capacitação e estejam dispostos a penetrar na superfície dos registros corporativos.
Me pergunto até que ponto deveriam ser diferentes os processos de governança para garantir a lealdade dos executivos aos seus acionistas, seja uma empresa privada ou estatal
Tive a sorte de me encontrar com desafios muito diferentes nos vinte anos seguintes e deixei há algum tempo o campo para me instalar nas salas de reuniões ou realizar transações complexas. A transição mais fascinante é, sem dúvida, a que eu estou vivendo hoje, tendo deixado recentemente a minha carreira naquela multinacional para participar de um projeto patrocinado pelo Estado. Observo que se estabelecem os mesmos dilemas de confiança e incerteza na hora de estabelecer e implementar sistemas de controle, e me pergunto até que ponto deveriam ser diferentes os processos de governança que garantam a lealdade dos executivos com seus acionistas – seja uma empresa de capital privado com cotação pública ou uma empresa estatal. Tenho refletido muito sobre esta questão nos últimos anos, quando comecei a ter contatos comerciais com empresas estatais na minha função de negociadora do âmbito privado.
Em ambos os casos, existe um agente a controlar e os sistemas de governança da empresa para alinhar com os acionistas por meio de incentivos. A este agente são fixados objetivos e metas, principalmente para o curto prazo. Em um caso, se trabalha contra o tempo para entregar os resultados na Bolsa de Valores, enquanto em outro se trabalha adaptando-se a marcos críticos para a administração pública. Somado ao foco de curto prazo, a articulação dos objetivos também é tingida com as considerações relativas aos desafios na comunicação. Quando se trata de problemas complexos e de estratégias orientadas a gerenciar incertezas e alcançar um compromisso entre as diferentes necessidades (econômicas, sociais, ambientais) é inevitável cair em simplificações que são fáceis de comunicar e se tem preferência por fazer referência a parâmetros que são muito fáceis de mensurar. Esta limitante ao diálogo entre o acionista e seu agente impede que se gere a transparência ideal para uma avaliação inteligente de gestão. A diferença entre o que é relevante e o facilmente “digerível” parece ser diretamente proporcional à complexidade e incerteza. O desafio do alinhamento do acionista ou cidadão com o agente pesa em ambas as áreas.
Onde vejo as principais diferenças entre a esfera da empresa privada e a estatal é na gestão da incerteza. Quero esclarecer que esta consideração é independente de preferências com respeito ao apetite de risco que tome uma organização. Em outras palavras, você pode ser hábil em lidar com a incerteza, tendo tanto um perfil de apetite como uma aversão ao risco. O tomador de decisão de uma empresa estatal trabalha em um sistema que lhe impede o desempenho em relação a cenários de alta incerteza, especialmente em sistemas onde as leis privilegiam aspectos formais sobre as questões de fundo. Me refiro às escassas possibilidades de renegociar, de comum acordo entre as partes, condicionar a realização de acordos a eventos futuros, explorar a assimetria de informação como uma vantagem de negociação legítima, etc. Todas estas ferramentas têm comprovada eficácia, mas são altamente restritas pela regulamentação que rege os procedimentos de contratação de entidades estatais. Estou convencida que, desta forma, muitas oportunidades são deixadas de lado. De acordo com a extensa literatura sobre a teoria dos jogos e da negociação, os maiores ganhos durante o processo de criação e distribuição de valor que se desenvolve precisamente durante uma negociação, se obtém jogando com o alcance de um acordo ou até mesmo manipulando as regras do jogo. Seria uma heresia mencionar algumas das possibilidades enunciadas na formulação da estratégia para realizar uma licitação pública!
É impossível estabelecer a relação de confiança entre o acionista/cidadão e seu agente quando a assimetria de informação e de capacidade é total
É que não deveria haver limites? Claro que sim! Mas a abordagem de controle não pode ser puramente transacional, como ilustrado na minha história. Aqui entra em jogo a confiança. Não é possível estabelecer uma relação de confiança entre o acionista/cidadão e seu agente quando a assimetria de informação e de capacidade é total. É por isso que eu defendo o ativismo dos acionistas e cidadãos pelo controle social informado das nossas instituições públicas e privadas, pela educação dos cidadãos à qual devem contribuir os industriais e a academia impulsionando a análise e debate de qualidade, pela rendição de contas como maiúscula e não apenas formais, com consequências justas para as más decisões que possam cometer os agentes – reconhecendo que diante da a incerteza não é possível prever o sucesso de uma decisão, só é possível agir tendo como base informações limitadas, com prudência na gestão do pior cenário e com a coragem de saber que ele pode se materializar.