Ou global ou responsável social
Dois médicos portugueses, que trabalhavam para o Sistema Nacional de Saúde (SNS) português na área das operações plásticas (não de beleza, mas de pessoas desfiguradas por acidentes ou graves doenças), resolveram despedir-se, criaram uma empresa off-shore em Gibraltar e voltaram a trabalhar para o SNS, mas agora sem nenhum vínculo contratual. Resultado de todo o processo: os dois médicos recebem muito mais, podem deduzir bastante mais, pagam apenas 10% de imposto de capitais e o SNS deixa de ter encargos para a Segurança Social. Ganham todos? Não. Perde o Estado, que não recebe as contribuições devidas para a Segurança Social e os impostos que cobra a um trabalhador por conta de outrem. Mas para os médicos e para o SNS é um jogo de win-win. Outro exemplo: das vinte maiores empresas portuguesas cotadas em bolsa, só uma não tem a sua holding ou parte das suas atividades deslocalizadas na Holanda (a maior parte delas) ou noutra off-shore.
A globalização é inimiga da responsabilidade social das empresas, sobretudo das que estão cotadas e que são escrutinadas trimestralmente pelos acionistas
Será que os dois médicos e as empresas do PSI-20 fazem isto por serem irresponsáveis socialmente? Não, absolutamente não. Fazem-no porque as regras do jogo conduzem a estas situações. Em primeiro lugar, a globalização abriu oportunidades que não era possível obter dentro das fronteiras nacionais. Em segundo, a financeirização do mundo levou a que o dinheiro seja atraído facilmente para onde paga menos em taxas, comissões e impostos. Em terceiro, os Estados nacionais tornaram-se impotentes para conter este movimento.
É por isso que considero que a globalização é inimiga da responsabilidade social das empresas, sobretudo das que estão cotadas e que são escrutinadas trimestralmente pelos acionistas. Esse é o primeiro erro. Um gestor que sabe que tem de apresentar resultados melhores que no período anterior de três em três meses é conduzido inevitavelmente a estar muito mais focado no curto prazo do que na estratégia da empresa a longo prazo. Em segundo, uma empresa que cumpra religiosamente as suas responsabilidades sociais, do ponto de vista ambiental, fiscal, na relação com os seus trabalhadores, etc., fica rapidamente em desvantagem, pelo menos nos seus custos, com as que não cumprem estas regras. E em terceiro uma empresa que, por razões patrióticas, mantém a sua sede em território nacional, fica igualmente em desvantagem perante as que se mudam de armas e bagagens para locais onde existem enormes vantagens fiscais.
Há uma outra questão relevante em matéria de responsabilidade social, que tem a ver com o equilíbrio entre a vida profissional e familiar dos trabalhadores. É uma matéria que tem sido muito discutida e sobre a qual existem as melhores intenções. Mas a prática é depois oposta ao discurso porque a globalização, que traz consigo uma enorme e, em certos casos, muito desleal concorrência, exige uma entrega dos trabalhadores que é concretizada à custa das horas passadas em família ou com os amigos. É preciso trabalhar mais horas por dia, é preciso trabalhar em piores condições, é preciso trabalhar com menos direitos e por menos dinheiro. Este é o caminho que se tem vindo a seguir na Europa, onde os direitos sociais e laborais dos trabalhadores estão claramente em refluxo. Em Portugal, estamos mesmo no ponto em que, para além de ser flexibilizado o despedimento individual, ele vai a par com a redução das indemnizações pagas por esse despedimento: era de 30 dias por ano de trabalho, está a passar para 20 dias e o objetivo é chegar aos 10 dias por ano de trabalho. Não há exemplo mais evidente de que, em matéria de relações laborais, a globalização é fortemente inimiga da responsabilidade social das empresas.
As empresas segregam valores para a sociedade. E quanto mais mediáticas as sociedades, mais o comportamento das empresas é um exemplo (bom ou mau) para os cidadãos
Quer isto dizer que tudo não passa de uma moda económica? Seguramente que não. O comportamento das empresas no que toca às questões ambientais é hoje em dia muitíssimo mais responsável que há dez anos e existe uma fortíssima consciência por parte dos dirigentes empresariais de que os consumidores são particularmente sensíveis a estas matérias. Também o apoio empresarial a grupos sociais desfavorecidos é hoje em dia praticado com regularidade. Mas noutras áreas, infelizmente, a globalização é inimiga da responsabilidade social, em particular como exemplifiquei na área fiscal e na do equilíbrio da vida profissional e familiar.
As empresas segregam valores para a sociedade. E quanto mais mediáticas as sociedades, mais o comportamento das empresas é um exemplo (bom ou mau) para os cidadãos. É isso que os dirigentes empresariais devem ter em mente quando tomam certas decisões. Como disse o Presidente Luis Inácio Lula da Silva, numa recente visita a Lisboa, quando se toma uma decisão é bom que se olhe as pessoas nos olhos. É neles que se vê o sucesso ou fracasso das decisões tomadas. E sobretudo aquilo que pensam sobre quem tomou certas decisões. Se essa prática for seguida, talvez isso nos leve a todos a construir um mundo diferente para melhor.