Recuperar para Transformar
Recuperar para Transformar nasce do profundo convencimento de que estamos, cidadãos, empresas e governos, diante de uma profunda mudança sistêmica que requer novas formas de definir e enfrentar os desafios aos quais nos deparamos como sociedade.
Desde a crescente desigualdade, econômica, política e social que se interpõe no caminho dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, aos objetivos de descarbonização da economia, que lutamos por manter em meio a uma crise energética global, ou a luta geopolítica pela liderança tecnológica que definirá em grande medida nosso futuro, os riscos, desafios e oportunidades que definem esta década estão altamente interconectados e são de natureza global.
Como enfrentá-los? A realidade é que não sabemos com certeza quais são as melhores respostas, e, para muitos destes desafios, carecemos de solução atualmente. Carecemos também de um mecanismo claro de financiamento: as estimativas do investimento necessário para enfrentar os desafios globais se situam em cifras bilionárias, impossíveis de mobilizar por qualquer estado ou organização multilateral somente.
Só encontraremos as respostas se mudamos as ferramentas que utilizamos para encontrá-las, começando por como entendemos o papel do Estado, do setor privado e da sociedade e, sobretudo, da interação entre eles.
No que concordamos os autores deste UNO38 é em que somente acharemos as respostas se mudamos as ferramentas que utilizamos para encontrá-las, começando por como entendemos o papel do estado, setor privado e sociedade, e sobretudo, a interação entre eles.
Se o estado não pode mais limitar-se a não atrapalhar, as empresas não podem mais ficarem focadas exclusivamente no benefício econômico. Jordi Sevilla, sob o paradigma de “missões”, define como os “desafios complexos exigem ativar esforços coordenados em torno de objetivos claros, capazes de mobilizar os recursos necessários para transformar a sociedade”.
O papel incentivador e regulador do estado e das organizações supranacionais para orientar o financiamento privado na direção da sustentabilidade e do impacto, e a resposta do setor, com um crescimento de mais de 30% anualmente, é um dos exemplos mais claros de avanço sob um propósito comum, compatível e mutuamente benéfico.
Trata-se de redefinir papéis, processos e enfoques tradicionais para catalisar soluções na direção de um objetivo comum: avançar na direção de uma sociedade mais resiliente, inclusiva e sustentável como pilar da recuperação.
Um dos desafios onde esta colaboração se faz mais evidente é o da transição climática. Joaquín Mollinedo nos recorda que o Plano Nacional Integrado de Energia e Clima (2019) prevê 240 bilhões de euros somente para a transição energética e assinala que, a partir de um quadro institucional e direcional claro, “o setor privado deve contribuir com esforço investidor e capacidade de execução, mas também conhecimento e inovação, com um horizonte de médio e longo prazo alinhados com o interesse geral”.
“Quem soma ganha” argumenta Ximo Puig ao afirmar que na Generalitat Valenciana “a empresa lidera e o Consell exerceu um papel de catalizador de iniciativas: aglutinando a PMEs e empresas motrizes; interconectando setores; e envolvendo a todo o ecossistema inovador”.
Raül Blanco exemplifica isso usando os PERTE, que, por concepção, incentivam “unir projetos e consolidar empresas de tamanhos muito diferentes, que têm que trabalhar juntas, contribuindo com sua experiência e dimensão, na definição e consecução de um grande projeto global”.
O olhar da América Latina que compartilha Gema Sacristán, junto com Matías Kulfas e Daniel Schteingart entre outros autores, nos assinala a necessidade de “passar de medidas defensivas e com objetivos a curto prazo a uma agenda de crescimento sustentável e inclusivo” que, por sua vez, torna imprescindível, diante da pouca margem de manobra das políticas monetária e fiscal, a colaboração entre o setor privado e o setor público.
Algo que, sem dúvida, requer também reformas estruturais. Rafa Domenech exemplifica esse ponto no quadro do Plano de Recuperação Transformação e Resiliência da Espanha, ao dizer que “seu efeito sobre o potencial de crescimento a longo prazo da economia dependerá do caráter transformador dos investimentos e de sua interação com as reformas estruturais, especialmente na medida que possam aumentar a quantidade e a qualidade do emprego, e melhorar a produtividade”.
Fátima Bañez nos recorda que se saímos da crise recentes foi “pela colaboração, o diálogo e a disposição a alcançar acordos que desembocaram na melhora do bem comum”. Marilyn Márquez nos deixa um roteiro prático na procura desses pontos de acordo e colaboração.
Estas e outras muitas reflexões de autores destacados se encontram nestas páginas, as quais agregamos, como não podia faltar, o olhar multilateral.
É mais necessário que nunca avançar na direção de padrões comuns e normativas integradas entre países que compartilham valores similares. A fragmentação normativa, em matéria de meio ambiente ou de economia digital, somente nos debilita, gerando incerteza, diminuindo a inovação compartilhada e minando nosso posicionamento geopolítico em um mundo no qual de novo emergem blocos dramaticamente diferenciados. Do mesmo modo, o financiamento conjunto de programas de investimento e inovação, como os IPCEI a nível europeu, será cada vez mais comum, para poder enfrentar as grandes transformações em matéria energética e de infraestrutura digital. Inclusive se isto supõe, como foi o caso do instrumento Next Generation, a emissão de dívida conjunta e solidária entre países que não estão sempre de acordo no demais.
Nada disso é uma utopia, ao contrário. Começamos a vê-lo de forma concreta e mensurável no quadro do instrumento Next Generation EU e na resposta à invasão da Ucrânia pela Rússia, como assinala Susana del Río, “recuperação e transformação estão acoplando suas vertentes para conseguir uma redefinição do projeto europeu, centrado em um modelo constitucional de soma”.
No entanto, este impulso, que alavanca também o incentivo financeiro, por si mesmo não será suficiente. Os novos modelos de colaboração requerem mudanças profundas para se tornarem realidade além dos choques externos. Necessitamos de uma cultura a nível de administração pública mais aberta e inovadora. É necessário que a transformação do papel das empresas como atores na sociedade vá além dos dados ESG para formar parte do DNA de seu governo corporativo e mandato ante seus acionistas. E que os mecanismos de colaboração público-privados se incentivem de forma expressa e consistente. Definitivamente, trata-se de redefinir papéis, processos e enfoques tradicionais para catalisar soluções na direção de um objetivo comum: avançar na direção de uma sociedade mais resiliente, inclusiva e sustentável como pilar da recuperação.