Uma política de formação para depois da covid (e além)
Em apenas uma década as gerações mais jovens das sociedades avançadas enfrentaram duas crises que colocam em risco sua inserção no mundo do trabalho e sua capacidade para vincular-se à comunidade a partir da confiança e do respeito. As cifras que deixa na Espanha a atual pandemia da COVID-19 são desconsoladoras: uma taxa de desemprego de 15% (quase 4 milhões de pessoas), próximo de 90% da perda de emprego nestas semanas se concentrou em contratos temporais e setores cruciais como a alimentação e o turismo estão sofrendo de maneira mais intensa o embate de um vírus microscópico.
A pandemia veio para acelerar mudanças que já estavam em curso. Nos últimos anos as sociedades desenvolvidas estamos assistindo a profundas convulsões econômicas e sociais. O que o economista Richard Baldwin chamou “globotica” (globotics), a interseção da globalização e a revolução tecnológica, está supondo a desaparição acelerada de tarefas associadas a habilidades e salários médios em benefício daquelas situadas nos extremos. Se espalha o medo ao desemprego massivo, à precarização do trabalho e ao incremento da desigualdade. A ameaça de uma difusa distopia tecnológica e a desconfiança sobre a capacidade de nossos representantes para enfrentarem fazem saltar as costuras do contrato social.
Seria tão pouco sensato como egoísta despreciar o medo da cidadania. Sabemos que as inovações contribuíram sempre a aumentar nosso bem-estar e que não há razões para es perar um desemprego massivo.
“Estamos por debaixo da média europeia no que diz respeito à proporção da população com habilidades digitais básicas”
Mas sabemos também que, a longo prazo, todos estaremos mortos. É precisamente agora, neste mesmo momento, quando estamos sofrendo, e alguns muito mais que outros, os custos do ajuste.
Entre o instrumental de políticas públicas e privadas para enfrentar este desafio, a formação tem um papel crucial. A pergunta fundamental que devemos fazer a nós mesmos está clara: são as atuais políticas de formação suficientemente eficazes para fazer que trabalhadores e máquinas sejam aliados em vez de adversários? No dia de hoje, a resposta na Espanha é negativa. Um de cada dois desempregados (mais de 1,6 milhão de pessoas) tem um nível baixo de estudos, ao igual que um de cada três funcionários (mais de 6,2 milhões). Incrementar o nível educativo de nossos trabalhadores e trabalhadoras é, portanto, uma condição imprescindível para conseguir um mercado laboral menos disfuncional e, com ele, maior bem-estar social e políticas públicas sustentáveis.
Uma estratégia público-privada de formação realmente comprometida com a empregabili dade, a competitividade e a criação de riqueza durante as próximas décadas deverá prestar uma atenção fundamental ao desenvolvimento das habilidades digitais e aos setores econômicos de maior potencial.
Em primeiro lugar, é importante destacar que na Espanha estamos por debaixo da média europeia no que diz respeito à proporção da população com habilidades digitais básicas. O problema é especialmente visível nas pequenas empresas. O fato de que apenas 6% das empresas de menos de 10 trabalhadores realize vendas por comércio eletrônico sugere o quão grave é a situação. Temos uma ampla margem de melhora na formação dos trabalhadores para o uso daquelas tecnologias que estão definindo já em 2020 quais são as possibilidades de bem-estar de uma sociedade.
Além disso, o crescimento exponencial do setor dos cuidados em um país tão envelhecido como o nosso; a necessária reconversão do turismo para padrões de maior qualidade; o impulso a uma indústria mais verde, digital e internacional; e uma Administração Pública mais ágil e eficiente fazem inevitável um acompanhamento formativo aos trabalhadores destes setores desde uma qualificação baixa para novas habilidades.
Esta atenção urgente às habilidades digitais e à requalificação em setores estratégicos deve ser estável, ágil e coerente com os demais esforços implantados pelos agentes públicos e privados. Para isso o diálogo e o consenso, garantidores de legitimidade e efetividade, têm que estar presentes já desde a própria fase de projeto destas políticas. Além disso, no momento de sua implementação, devemos assegurar-nos de que mecanismos adequados garantem uma avaliação transparente e eficaz. Finalmente, a aposta pela tecnologia, o impulso ao empreendimento e a economia social, e o uso de metodologias inovadoras (como, por exemplo, o participatory action-oriented training ou os programas bootcamp) deverão estar presentes, de forma transversal, em qualquer esforço neste âmbito.
“Esta atenção urgente às habilidades digitais e à requalificação em setores estratégicos deve ser estável, ágil e coerente com os demais esforços implantados pelos agentes públicos e privados”
Necessitamos de forma urgente estratégias e políticas estáveis, flexíveis e coerentes que permitam a empresas, poderes públicos e sociedade civil moldar estas forças tecnológicas a nosso favor. A política de formação tem um papel central nesse esforço. Não se trata somente de acompanhar em processo de transição àqueles cidadãos mais vulneráveis. Se trata de tornar possível o processo de digitalização em si mesmo: somente se a maior parte da sociedade se beneficia da revolução digital evitaremos as minorias sociais capazes de bloquear a obtenção de suas evidentes vantagens. Superemos o falso dilema entre equidade e eficiência.