Proteção judicial efetiva e separação de poderes
Todo processo judicial com impacto midiático afeta a reputação de empresas e indivíduos que se veem envolvidos no mesmo. Para posicionar o debate neste contexto, creio que é obrigatório ir além da imagem que nos assalta quando tratamos desta questão, que é a da capa de um jornal com uma imagem de uma figura pública sendo escoltada ao carro da polícia; gostaria de ampliar o espectro e leva-los a casos em que não apenas o acusado sofre o impacto, mas também terceiros, que nada têm a ver com o processo judicial. Como em “Watergate“, também temos tido, na Espanha, casos em que a imprensa acabou por divulgar o nome do restaurante onde foram gravadas algumas conversas ilícitas. O impacto sobre o negócio de restaurante foi sangrento.
E coloco este exemplo para evitar um prejuízo habitual quando tratamos desta questão: estamos acostumados a pensar que “se foi citado, por algo será”. E isso dá origem à legitimação de um ataque que afeta dois princípios básicos do nosso sistema. Por um lado, o princípio da proteção judicial efetiva. Por outro, o da presunção da inocência.
Os juízes e magistrados devem fazer esforços gigantescos para preservar a sua autonomia diante de opiniões publicadas
O marco de indicadores da justiça na União Europeia difere entre os que avaliam a eficiência dos procedimentos (disposition time ou clearance rate), a qualidade da justiça e, finalmente, a independência dos órgãos judiciais[1]. Analisando esta questão nos meus tempos universitários, imerso no “basement” de uma biblioteca da Law School, me deparei com um livro intitulado “Who controls the controller?”, sobre como deviam incidir os “checks and balances” entre poderes sobre o então novo “quarto poder”, dos “media”. O mais apaixonante do livro é que a análise não está centrada em como controlar a imprensa, mas em como defender o sistema judiciário para preservar o seu necessário quadro de independência no estudo, investigação e resolução de seus casos.
Os juízes e magistrados devem fazer esforços gigantescos para preservar a sua autonomia diante de opiniões publicadas – e reforço o termo “opinião” porque, na maioria dos casos, a notícia não se limita a uma descrição dos fatos. E quando conseguem ditar uma resolução, ignorando a opinião publicada, ninguém pode negar que se põe em causa a sua independência, se a sentença ou despacho é contrário ao que a imprensa profetizava. Está doente uma sociedade que não aceita aquelas resoluções judiciais que não coincidem com as que previamente – durante meses! – foram preconizadas por articulistas e comentaristas? Quiçá pareça dura a expressão “sociedade doente”, mas sem dúvida esta alcançou sua rota de colisão: a credibilidade do sistema judiciário e a efetiva tutela judicial.
O principal aporte na construção do Estado de Direito e do “Rule of Law ” foi justamente quando o conceito inquisitorial da “presunção da culpabilidade” foi substituído pelo princípio da presunção da inocência. E esta é precisamente sobre a qual repousa qualquer processo judicial, e que sofre tremendo impacto – como um torpedo em rota de colisão – quando há repercussão midiática. O Estado de Direito vacila quando os meios de comunicação criticam um advogado ou um juiz por levar a defesa ou o pleito de alguém de ideologia diferente à linha editorial do jornal.
A “freedom of speech” diante da proteção judicial efetiva e a independência do poder judicial: este é o desafio[2]. A repercussão na reputação das empresas e indivíduos, quando enfrentam um litígio, é apenas a ponta de um iceberg muito maior, que estende as suas raízes na construção de nosso sistema democrático e que hoje deve rever os “checks and balances” na separação dos poderes – incluindo, hoje, o quarto poder, o midiático – e o respeito às instituições e operadores do sistema judicial.
O impacto sobre a reputação das empresas e indivíduos, quando enfrentam um litígio, é apenas a ponta de um iceberg muito maior, que estende as suas raízes na construção de nosso sistema democrático
A cada um de nós cabe um papel e daí o acerto da UNO, ao abordar esta questão a partir de diferentes prismas: o poder legislativo deverá encontrar as fórmulas que permitam a tutela judicial efetiva e os processos judiciais adaptados aos tempos em que vivemos (com especial ênfase ao “timing” e ao segredo de justiça); o poder executivo deverá ser zeloso e extremamente isento no que diz respeito ao sistema judiciário; e este deveria proteger a sua autonomia e independência, o que exige o respeito aos demais poderes… incluindo o quarto poder, que deveria saber levar as notícias que preocupam a opinião pública e converte-las em propostas de debate para a melhoria do sistema – e não apenas a sua denúncia[3].
[1] ALONSO-CUEVILLAS, J. Eficiência e transparência do sistema judicial espanhol no contexto europeu. Ed. Bosch, 2015. p. 34.
[2] É apaixonante a análise que o autor realiza, já em um âmbito de aplicação internacional de um direito como a liberdade de expressão. BASSIOUNI, M.C. An embryonic system of checks and balances: judicial review of global and national governance bodies. In Globalization and its impact on the Future of Human Rights and International Criminal Justice. Ed. Intersentia, 2015.
[3] E isto deve ser resolvido rapidamente porque o novo debate a partir da doutrina americana, sobre a necessidade de reexaminar o equilíbrio entre a transparência e o dever do segredo governamental diante do direito à informação na era pós-Snowden já chegou até nós. Deixe-me apontar esta questao como um novo foco de discussão, juntamente com o que foi tratado neste artigo, sobre concentrar a preocupação do legislador. Confer KROZNER, Debra. Transparency, Surveillance and the Future of First Amendment Law, Volume 2, Verão, Yale Law Report, 2015.