#otribunaldaopiniãopública
“No início, não me preocupei. No entanto, depois de desligar o telefone, olhei pela janela e entrei em pânico. A casa estava cercada por repórteres, caminhões de TV, câmeras e curiosos”. Assim descreveu Pete Townshend, guitarrista do The Who, compositor e arranjador dos maiores sucessos da banda, na manhã de 11 de janeiro de 2003, quando soube que seu nome estava na primeira lista de nomes de cidadãos britânicos, elaborada pelo FBI e entregue às autoridades do Reino Unido para a investigação sobre suposto consumo de pornografia infantil. Declarou em sua autobiografia, Who I Am, publicada em 2012.
No livro, ele descreve como a investigação conduzida entre os anos de 1999 e 2000 para denunciar o fenômeno que vinha sendo produzido na emergente Internet, o tornou um suspeito durante quatro meses. Embora o caso tenha sido encerrado nesse curto espaço de tempo ao provar-se sua inocência depois da análise forense de onze computadores e comprovar seus escritos sobre o assunto e sua colaboração com ONG para denunciar este flagelo social, ele mesmo reconhece o enorme dano que sua reputação e sua causa sofreram.
“Seria hipócrita dizer que não fui afetado pela percepção de que pessoas que não me conhecem e tinham de mim além do que haviam lido nos tabloides sobre a minha prisão em 2003 (…) permaneço dolorosamente consciente da repercussão que tudo aquilo pode ter causado às fundações com as quais tenho colaborado e nas que me vejo forçado a manter um perfil discreto”.
Alguma coisa mudou e não é por casualidade que tenha coincidido no tempo com a crise de confiança que gestores de nossa sociedade, instituições e empresas
Se aquele incidente tivesse acontecido hoje em dia, aquele que foi considerado o roqueiro pioneiro da comunicação digital – no seu site, lançado em 1995, Townshend já permitia o download de algumas de suas gravações e em 1996, ele financiou uma das primeiras rádios on-line –, provavelmente teria sido marcado com um estigma maior. Cada pesquisa com seu nome levaria a indeléveis resultados da notícia, sobre as denúncias dos internautas e dos “memes” com brincadeiras e piadas que acompanham os julgamentos públicos da sociedade em rede.
Algo mudou? Ou talvez não?
Pessoas anônimas com maior influência midiática que os próprios meios, juízes conscientes de que a opinião pública pode influenciar, em certa medida, as decisões judiciais, advogados que têm claro que devem ajudar seus clientes tanto dentro como fora das cortes de Justiça… Alguma coisa mudou e não é por casualidade que tenha coincidido no tempo com a crise de confiança que os gestores de nossa sociedade, instituições e empresas estão atravessando. E tampouco é por acaso que coincida com o maior aumento experimentado por seres humanos em sua capacidade de interligar a outros. Sem dúvida, os cidadãos têm agora mais capacidade do que nunca para formar a mais amplo corpo de jurados possível: a opinião pública.
Estamos sendo testemunhas de uma profunda transformação na forma como a cidadania tem de compreender e compartilhar o que está acontecendo ao seu redor. Algumas áreas da vida pública, como os políticos, há tempos estão acostumados ao escrutínio permanente de suas atividades. Agora, o requisito é estendido a qualquer camada da sociedade e se eleva a um nível mais elevado, onde a falta de transparência e compromisso de personalidades ou personagens públicos provoca uma imediata e ativa reprovação de um setor importante da sociedade. Tampouco é casual que o processo de mudança seja moldado dentro de uma revolução que é tanto tecnológica quanto de acesso às tecnologias. Não apenas se têm desenvolvido uma infinidade de plataformas que intensificam a troca de informações e opiniões, mas também, uma profunda democratização tem sido produzida com o uso das mesmas. A capacidade de formação de opinião pública passou dos meios de comunicação tradicionais – imprensa, rádio e televisão – às redes sociais, onde a opinião gera interesse quando já se espalhou a informação.
Coloquemos como exemplo o caso de Dominique Strauss-Kahn, ex-chefe do Fundo Monetário Internacional. Sem dúvida, suas imputações por suposta tentativa de estupro de uma empregada de um hotel em Nova York, em primeiro lugar, e mais tarde por suposto envolvimento em prostituição teriam sido notícia em qualquer época desde a existência dos meios de comunicação. No entanto, o que definitivamente jogou Strauss-Kahn ao assédio da opinião pública foi o uso generalizado das redes sociais para discutir qualquer novo detalhe sobre o andamento do caso. Deram a volta ao mundo fotografias e declarações das supostas vítimas, incentivadas pelo clima de desconfiança nas instituições e a insatisfação geral com a classe política. O tribunal foi, sem dúvida, o único que julgou o político francês.
A outra novidade está na permanência das informações na internet. A fugacidade das notícias naqueles anos de “esquecimento analógico” que agora parecem tão distantes, quando as informações publicadas ficavam armazenados em arquivos e na fraca memória de, talvez, alguns dos leitores, foi relegada pela permanência dos dados em plataformas mundiais e pela facilidade e rapidez no acesso à informação.
Quais são as dificuldades apresentadas por essas mudanças?
Este contexto de mudanças na formação da opinião pública põe à prova alguns dos elementos clássicos de gestão da comunicação durante um litígio.
Em primeiro lugar, devemos destacar o fator temporal. A velocidade em que aparecem comentários foi acelerada e comentários sobre um assunto, o que leva a uma redução no tempo de reação para gerenciar alguns líderes de opinião cada vez mais heterogêneos. No entanto, os longos prazos que caracterizam a maioria dos procedimentos jurídicos são superados pela velocidade com que o “processo da opinião pública” tenta, não sem erros, formar uma opinião em algumas poucas horas ou dias sobre um suposto delito.
Este desafio afeta não apenas os judiciáveis, mas está colocando à prova a própria ação da justiça. Em algumas ocasiões pode parecer que os princípios e valores que inspiram o Direito não estão evoluindo no mesmo ritmo que a forma de pensar da sociedade, o que pode ser evidenciado nas opiniões expressas nas redes sociais e que não entendem algumas decisões judiciais, por mais que estas estejam amparadas em uma perfeita interpretação da norma.
O segundo fator, como dizíamos anteriormente, é a permanência de nossa atividade na Web. Ao definir o foco da opinião pública sobre uma pessoa imersa em um processo litigioso, toda a sua “impressão digital” emerge, trazendo para a atualidade o que foi dito sobre isto há anos ou essa infeliz declaração de que nem sequer recordava que havia sido escrito sobre ela. A este respeito, embora o conjunto de regras contidas no conceito do “direito ao esquecimento” tenha evoluído, é muito difícil compensar o efeito de algo que já foi dado conhecimento. O caso do suposto vazamento da lista de usuários da Ashley Madison recentemente provou isso.
O leitor pensará que até agora estas mudanças só geraram dificuldades para a gestão profissional da reputação pessoal e corporativa, mas não é exatamente assim. Vamos ver como este novo cenário oferece também algumas oportunidades.
Uma vez que tenhamos assumido, com espírito esportivo, que as redes sociais são os novos fóruns, como eram os bares e restaurantes onde se compartilhavam e cruzavam opiniões populares, mas com a vantagem de que essas conversas podem ser conhecidas, monitoradas e medidas, por que não aproveita-las? Assim o fez a equipe de comunicação do campeão paraolímpico sul-africano Oscar Pistorius. Visando preparar o julgamento em que o suposto assassinato de sua namorada pelo próprio atleta, e em linha com a estratégia jurídica previamente estabelecida, abriu-se uma conta no Twitter com o revelador nome de @OscarHardTruth para tentar vencer a batalha que o atleta também enfrentava nas redes sociais. Deste modo, Pistorius podia relacionar-se sem intermediários com os novos criadores e líderes de opinião. A oportunidade é clara: no ambiente digital pode-se trabalhar de maneira direta a identidade de uma pessoa ou organização e sua relação com o júri da opinião pública. O poder dos nossos argumentos e a credibilidade da nossa versão serão, neste momento, os fatores-chave para decantar a opinião de um ou outro lado.
O desafio consiste em participar desta nova maneira de criação da opinião pública e fazê-lo de forma compassada ao que acontece dentro da Sala, sempre sob a batuta da direção dos advogados
Ainda assim, não podemos cair na conclusão simplista de que o desafio encontra-se unicamente em fornecer as informações adequadas através das redes sociais. Nem mesmo em entender que o cidadão que, no ambiente on-line às vezes atua como um especialista em um assunto, às vezes como juiz e, às vezes, como jornalista. Diante de um processo judicial, a estratégia deve ser global e ter em conta todas as variáveis das quais falamos. E isto também supõe uma nova área de oportunidade para assessores jurídicos. A necessidade de acompanhamento de um advogado para com seus clientes vai além dos limites da sala, não só pela influência que pode ter o contexto informativo no desfecho do caso, mas porque o cuidado da reputação do cliente pode ser convertido em valor agregado que diferencia advogados bem sucedidos neste novo cenário.
Algumas chaves para sobreviver neste novo paradigma
A partir da experiência vivida em dezenas de casos geridos, propomos algumas chaves que, recorrentemente, se tornaram fator de sucesso para o bom fim de um processo legal, ao menos em termos de proteção da reputação da pessoa ou da companhia protagonista.
- Altera a forma, não o conteúdo. Ainda que insistamos na profunda transformação que sofreu a forma como os pontos de vista dos cidadãos, com novos estilos, prazos e dispositivos, há algo que não muda. Continua a ser uma equação que combina os conteúdo com as relações, a capacidade de argumentação com a conexão entre quem explica e quem recebe a explicação. Segue existindo capacidade para retificar informações incorretas, mas com novas formas e meios de contato. Continuamos tendo que manter o relacionamento durante todo tempo que for necessário, tendo a confiança mútua como fundamento. Ou seja, a chave do trabalho segue sendo a: construir uma boa história, com argumentos sólidos e respostas consistentes e fundamentadas, evitando, na medida do possível, a improvisação. E para sermos capazes de desenvolver esta tarefa com competência, é vital conjuga-la com a chave que vem a seguir.
- A melhor improvisação é aquela preparada: prevenção. Se a chave para ganhar um julgamento é ter estudado todas as variáveis de um caso até o último detalhe, conhecer as partes e saber defende-la perante um juiz, igualmente antecipar-se, identificar stakeholders, desenvolver argumentos para cada cenário e detectar até o último risco serão requisitos indispensáveis para também ganhar o julgamento da opinião pública. Portanto, não podemos nos preocupar com a reputação de uma pessoa ou uma companhia somente quando esta está em vias de julgamento, mas construir uma estrutura de proteção forte muito antes que chegue este momento. O segredo para construir relações de confiança com outras que podem converter-se em aliados e defensores de nossa atuação, é fazê-lo com tempo suficiente para se pôr à prova a nossa credibilidade e aumentar a confiança. Não existem atalhos para se construir amigos.
- Capacidade de adaptação e agilidade na resposta. Recentemente, o sistema judicial começou a fazer esforços para agilizar os trâmites e encurtar o tempo de resposta aos cidadãos. Mas, como dissemos antes, isto não é suficiente. É uma realidade que o “júri da opinião pública” atua com uma rapidez muito maior do que os tribunais de Justiça, de modo que os tempos são marcados pelas redes sociais, os influencers e os meios de comunicação, e não podemos ficar para trás. Conhecendo este contexto, aqueles que lidam com o caso, não podem, em nenhum momento, ignorar ou deixar de ter em conta este cenário, mas agir de acordo com as regras de rapidez, imediatismo e permanência da informação, através dos quais se rege o mesmo. Uma resposta ágil e eficiente é condição sine qua non para continuar jogando o jogo de tênis que supõe a exposição pública durante um litígio.
Em conclusão, o desafio consiste em participar desta nova maneira de criação da opinião pública e fazê-lo de forma compassada ao que acontece dentro da Sala, sempre sob a batuta da direção dos advogados. Por isso, é tão importante que os profissionais de advocacia, que defendem os seus clientes no sentido mais amplo, abordem a gestão do problema em todas as suas dimensões.
Sempre restará alguém que pensa como Nicholas Easter – interpretado pelo ator John Cusack – no filme O Júri (2003), e que pretende manipular um julgamento tentando minar o júri cidadão que o compõe. No entanto, a história mostra que o efeito de incorporar a participação dos cidadãos no júri é precisamente para incluir uma perspectiva menos tecnicista e mais próxima do que acontece na sociedade. O mesmo se aplica à opinião pública no momento em que mais se democratizou a comunicação. Já não há mais a possibilidade de que alguns poucos meios ou líderes de opinião dirijam a “opinião pública” –confundida às vezes com o “opinião publicada”. A aldeia global tornou-se maior de idade, e gerencia a criação de sua opinião como um adulto. Devemos, portanto, tratá-la como tal e falar o mesmo idioma. É possível que as informações que recebemos e trocamos seja menos técnica que nunca no aspecto jurídico, mas também é mais humana, tanto quanto é o novo júri da opinião pública. Um júri que também sabe como ganhar.