Os desafios da democracia Argentina
Em um trabalho de quase três anos da Organização dos Estados Americanos (OEA) e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que foi intitulado “Nossa Democracia“1, dizíamos, em sua introdução: “o desenvolvimento democrático da América Latina continua enquanto os seus dilemas e questões transformam-se. Cada vez inquieta menos o passado para nossa democracia. Cada vez interessa mais o futuro”. Agora, a pergunta já não é o que fazer para evitar um retorno ao autoritarismo, mas o que fazer para resolver o déficit e garantir maior qualidade à democracia ou como organizar um crescente apoio da sociedade que dê poder e sustentabilidade à democracia na Região.
Nesse trabalho, academicamente coordenado por Dante Caputo e José Antonio Ocampo, do qual fiz parte da coordenação política, sustentava Heraldo Muñoz, o atual Chanceler do Chile: “apesar dos progressos no período pós-transição democrática, se observa uma frustração cidadã diante da desigualdade da distribuição da riqueza e do exercício do poder, diante da frágil participação popular nos assuntos públicos, da corrupção pública e privada, da insegurança dos cidadãos e da fragilidade de Estado, entre outros aspectos”. Coincidimos quanto à necessidade de ampliar a cidadania e fortalecer institucionalidade em todos os campos como um fundamento necessário para reduzir as desigualdades e aumentar a confiança. Convencidos de que a democracia será sustentável na medida em que a sua legitimidade de origem será somada à legitimidade do exercício e dos fins.
No marco deste projeto, entre 2008 e 2010, organizamos inúmeros diálogos com protagonistas políticos, acadêmicos, econômicos e sociais em 18 países da América Latina e do Caribe. Simultaneamente, ao encontrar regularidades e semelhanças, aprendemos a dificuldade de transformar as mesmas em uma teoria dogmática que ocultasse as peculiaridades dos distintos processos históricos e as atuais realidades de cada comunidade nacional. Como diria o pensador social Manuel Castells, “o que não há na minha trajetória intelectual é uma teoria; mudei de teoria centenas de vezes e seguirei mudando… para mim não é um dogma… Falo da teoria utilizável… a temática que sempre tentei manter é a temática do poder”
Coincidimos na necessidade de ampliar a cidadania e fortalecer institucionalidade em todos os campos
É possível, com estes reparos intelectuais e com a experiência prática, pensar que as ideias centrais de “Nossa democracia” na América Latina são de valor heurístico para analisar a transição atual na Argentina: entre o governo da presidente Cristina Fernandez Kirchner e quem vier sucedê-la, a partir de 10 de dezembro de 2015. Após doze anos de processo político, que começou com a presidência de Néstor Kirchner e a profunda crise entre os anos de 2001 e 2002, existe um desafio importante para a sociedade argentina. Os cidadãos e os principais protagonistas deste processo político eleitoral deveriam assumi-lo plenamente.
Um aspecto estrutural e um outro, de conjuntura, desafiam o país nos campos institucional e cultural e se influenciam e interpelam mutuamente. É quase uma constante que a Argentina mostra, por seus recursos naturais e condições de sua população, uma extraordinária capacidade para recuperar-se rapidamente das crises socioeconômicas e políticas que recorrentemente sofre; mas precisamente do outro lado desta moeda está a dificuldade que mostra para manter processos sustentáveis de crescimento econômico, igualdade social e fortalecimento institucional. Isto significou que as conjunturas favoráveis foram aproveitadas insuficientemente e os contextos negativos geraram fraturas graves na sociedade e na sua estrutura produtiva e institucional. Uma das consequências disso é que a “Sociedade da Classe Média” que a Argentina parece sempre próxima de alcançar, converteu-se em um horizonte que se afasta justo quando não a percebem ao alcance da mão.
A conjuntura eleitoral, pelo menos neste Outono Austral, prevê um equilíbrio importante entre as várias alternativas políticas e a possibilidade de que, pela primeira vez, se coloque em prática o mecanismo de reeleição que prevê a Constituição Nacional, alterada em 1994. O enfraquecimento das formas tradicionais dos Partidos Políticos e uma crescente falta de confiança dos cidadãos no funcionamento das suas instituições, tornam o cenário ainda mais complexo.
Além disso, o contexto internacional parece menos favorável do que em alguns momentos deste século. Problemas estruturais da economia argentina reaparecem e o dinamismo social dos primeiros anos dos governos dos Kirchner foram esgotados. A qualidade institucional retrocede e a polarização política volta a crescer em detrimento do debate democrático e dos consensos patrióticos.
Não menor, mas um problema que ocorre habitualmente na Argentina é que se confundam Ideias com Projetos; estes com Políticas Públicas; e sentimentos compartilhados com Políticas de Estado; todos necessários, mas que apenas frutificam se passam a ser entendidos que cada um é sustento do outro. Não há Consensos Políticos sustentáveis se não se desenvolvem as ideias a partir de análises profundas e sistemáticas da realidade, com uma clara compreensão das oportunidades e dos riscos apresentados, aproveitando uns e superando outros. Estreitamente ligada a esta atitude, há uma visão sem apreensão da realidade global à nossa volta; analisa-la e compreende-la não garante o sucesso na política pública, mas a ignorância pavimenta o caminho para o fracasso.
Na Argentina é que se confundam Ideias com Projetos, estes com Políticas Públicas, e sentimentos compartilhados com Políticas de Estado
Neste contexto cresce uma demanda cidadã por Debates e Diálogos que, comprometidos com as realidades e necessidades do presente, propõem uma visão e um caminho de meio e longo prazo sustentáveis. Isto implica, na atual conjuntura política, imaginar o próximo período como um Governo de Coalizão. Esta experiência não tem sido habitual na tradição política argentina: há que se construir, embora não haja antecedentes suficientes.
Felizmente, não estamos diante de um deserto de lideranças, elas existem em diferentes áreas da Sociedade Argentina e se alcançam a sinergia, podem permitir a superação do negativo mas avançar e retroceder, subir e cair drasticamente. Trata-se de escutar e olhar com sinceridade, respeito e sentido construtivo, de descordar democraticamente e concordar responsavelmente.
As formas institucionais, as épocas, os temas e os compromissos parlamentares das eventuais coalizões deverão ser definidas nos próximos meses. O desafio é compartilhar em áreas como a Educação, Energia, Transparência, Justiça e Saúde alguns consensos substanciais. Devemos evitar os “falsos consensos” de simplesmente colocar-se de acordo, por exemplo, quanto a educação ser para todos e que deve ser de qualidade. Para chegar a consensos substanciais é preciso acordar: que é preciso alterações alcançá-la, qual é o custo orçamentário e como é possível financiá-lo, quais as resistências a serem superadas através da negociação e persuasão coletiva e quais são os espaços do poder e como eles são construídos.
Pode-se afirmar que a cultura política e cidadã argentina não contam com experiências suficientes a este respeito. No entanto, disto se trata a POLÍTICA: de reunir vontades para mudar, para construir um poder democrático que permita superar novos e velhos desafios. Temos que habilitar, com um olhar de longo prazo, uma sustentabilidade para o crescimento econômico com igualdade social em uma democracia plena de cidadãos.