Empresas e corrupção na América Latina
O tumulto regulatório anticorrupção da última década está gerando profundas mudanças na governança corporativa. A agressiva aplicação do Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), nos Estados Unidos, juntou-se, em primeiro lugar, à crescente aplicação de leis semelhantes em outros países da OCDE – particularmente Alemanha, Reino Unido Suíça e Canadá – e, mais recentemente, ao estabelecimento de regulações similares no Chile (2009), na Colômbia (2011) e no Brasil (2013). Se a isto somarmos a discussão legislativa de projetos análogos no Peru, México e Argentina, podemos prever uma rápida nivelação do campo de jogo entre empresas da OCDE e companhias latino-americanas. A disseminação regional do escândalo da Petrobras já começou a acelerar este processo.
Com algumas diferenças associadas a cada sistema jurídico, a norma legal já é global: um adequado programa de conformidade aumenta significativamente a possibilidade de negociar com as autoridades o deferimento ou o encerramento de um inquérito, a redução das sanções econômicas e a mitigação da responsabilidade penal dos executivos. Um “adequado” programa inclui ações no interior da empresa e em relação à cadeia de valor. No interior da empresa requer, minimamente, o estabelecimento de princípios, políticas e procedimentos internos para prevenir, detectar e corrigir atos proibidos, o treinamento de todo o pessoal na aplicação concreta destas políticas e procedimentos e um sistema de “justiça interna” – investigação, sanção e aplicação de medidas corretivas no caso de violações. Em relação à cadeia de valor, as regulações exigem a devida diligência nas relações comerciais com terceiros – afiliados, fornecedores, agentes, contratados, etc – e a adoção de medidas proporcionais ao risco que cada terceiro apresenta.
As novas leis, apoiadas por uma sociedade civil cada vez mais eficiente em reivindicar a sua aplicação, obrigam que empresas abandonem o cumprimento formal e o integrem tanto no interior da empresa quanto em suas relações com terceiros
Em outras palavras, o cenário mudou. O argumento da desvantagem diante de competidores sujeitos a regras menos exigentes – que, consciente ou inconscientemente determinou a ênfase na aplicação dos programas de compliance na região – é parte do passado. Ainda que muitos funcionários públicos não tenham se atentado para a mudança, as novas leis, apoiadas por uma sociedade civil cada vez mais eficiente em reivindicar a sua aplicação, obrigam que empresas abandonem o cumprimento formal e o integrem tanto no interior da empresa quanto em suas relações com terceiros.
A integração do compliance ao negócio
Ainda que a maioria das empresas conte com códigos de ética, a “maturidade” dos programas implementados em consequência varia significativamente, tanto em função das leis as quais está submetida como pela proximidade dos escândalos ocorridos, seguidos de imposição de sanções.
No nível mais baixo se encontram aquelas companhias que ainda mantêm uma abordagem fragmentada. Predominante em empresas menos expostas a sanções internacionais, esta abordagem é essencialmente reativa. A função do compliance – geralmente absorvida por áreas jurídicas ou auditorias – mantêm-se “ad-hoc”, sem integrar processos com outras funções -finanças, procurement, compras, vendas, marketing. Normalmente dotada de recursos mínimos, o programa é visto como uma formalidade e administrado de maneira documental. Naturalmente, é praticamente irrelevante quando enfrenta uma crise.
Em um nível intermediário concentram-se empresas que, porque fazem seus concorrentes ou porque exigem seus sócios de negócios, hierarquizaram parcialmente a função de compliance, outorgando certa visibilidade consistente na implementação de processos de “longo prazo”, que aspiram modificar alguns aspectos da cultura corporativa, sem pausa, mas também sem pressa. A função de compliance se destina, em maior medida, a definir e educar as forças de vendas nas chamadas “zonas cinzentas” – políticas de presentes e hospitalidade, entretenimento, contribuições de caridade, patrocínios, etc. Estes processos ainda não foram internalizados e, por isso, tampouco foram automatizados. Ainda que a função de compliance seja acompanhada, ou mesmo integrada pela gerência sênior, ainda não participa dos processos de tomada de decisões mais relevantes. A maioria das empresas que operam na América Latina se encontram nesta fase. No caso das subsidiárias de multinacionais, a agenda de compliance está dominada pela função de captar maior atenção do CEO local e pela “adaptabilidade” do programa projetado pela sede para a realidade regional, especialmente quanto à necessidade de conviver com setores da economia informal – que, segundo dados da OIT, supera os 47%, em média, na região -, com certas práticas sindicais, de organizações sociais e das forças de segurança.
Finalmente, algumas poucas empresas, especialmente aquelas que já passaram por uma crise e estiveram sujeitas a monitoramento, têm dedicado significativos esforços – orçamentários, humanos e tecnológico – para integrar a função de compliance a todas as decisões corporativas. A integração é fortemente acompanhada por uma arquitetura tecnológica, que automatiza processos já internalizados pela organização. Estas empresas já apreciam os benefícios de “não jogar no limite” em certos negócios, e desfrutam da eficiência gerada pela confiança organizacional, fortalecida por valores compartilhados. Muitas dessas empresas participam dos debates regulatórios globais, lideram práticas em suas indústrias e centralizam seu marketing nos benefício de negócios éticos. Em muitos casos, estas também compreendem a necessidade de adaptar os programas a determinadas especificidades regionais e aumentam o ownership dos departamentos locais.
Os riscos apresentados por parceiros de negócios
Diferente da integração do compliance no interior da organização, a administração dos riscos apresentados por parceiros de negócios é mais homogênea na região: quase todas as empresas estão em um estágio embrionário.
A responsabilidade pelo “suborno indireto” não é nova. No entanto, a prática generalizada de deixar que parceiros locais – não alcançados pelos regulamentos globais – “façam o trabalho sujo”[1], levou reguladores a reforçar o sistema de prestação de contas. Onde antes era válido “fechar os olhos” diante de um suborno pago por um parceiro de negócios, atualmente a “cegueira voluntária” não apenas não funciona como uma defesa, mas, cada vez mais, atua como a base da responsabilidade empresarial, legalmente definida como a “falha na supervisão” ou a “falta de procedimentos adequados” para prevenir o delito cometido por um terceiro.
Para evitar a responsabilidade sob estes regimes de imputação, as companhias devem agir com diligência ao contratar seus terceiros. A receita padrão consiste em classificá-los de acordo com o risco apresentado – baixo, médio e alto – e adotar medidas preventivas sobre “os mais arriscados”. Estas medidas incluem a introdução de direitos de auditoria e cláusulas de rescisão contratual no caso de existirem suspeitas de que o risco será concretizado, seu treinamento e comprovação dos antecedentes comerciais por meio de fontes externas.
Ainda que a maioria das empresas conte com códigos de ética, a “maturidade” dos programas implementados em consequência varia significativamente
Embora no abstrato pareça razoável, aplicar esta receita não é fácil. Muitas empresas globais não conhecem o universo de seus parceiros de negócios ativos e, quando conseguem identificá-los, lhes custa classificar os riscos apresentados. Geralmente acabam fazendo baseando-se em estereótipos – o risco de corrupção do país de origem ou da indústria na qual atuam –, sem atentar-se para o risco que apresentam, concretamente, em suas relações com a companhia. Assim como o programa de compliance, monitorar a adequação do objeto do contrato aos antecedentes de terceiros, ao preço e às práticas de mercado exige esforços de integração com diferentes áreas – compras, finanças, jurídico, contract management –, que nem sempre estão preparadas ou dispostas a responder de forma adequada. A complexidade, potencializadas em companhias globais, foi evidenciada em um recente levantamento da Dow Jones, que mostrou que apenas 51% das multinacionais pesquisadas considera que suas políticas para parceiros de negócios são eficazes, e que apenas 5% têm grande confiança nelas. Mais uma vez, um sistema fragmentado ou “ad-hoc” aparece como uma solução simples e barata, mas, a médio prazo, ineficaz.
Conclusão
A relação existente entre a maturidade do programa de compliance e a proximidade que cada empresa teve de uma crise sugere que não podemos esperar que o setor privado lidere as mudanças necessárias para a prevenção da corrupção, se não se protege a competitividade. A convergência regulatória atual, somada aos padrões que algumas empresas estão desenvolvendo coletivamente – notavelmente a financeira, a farmacêutica e aquelas associadas a infraestruturas públicas – têm o potencial de nivelar o campo de jogo, de modo a permitir que o setor privado desempenhe um papel mais ativo na redução da corrupção e, com isto, na promoção do desenvolvimento na região.