A rede e o espólio informativo e cultural
Entramos em uma fase histórica na qual a percepção das enormes vantagens da internet começa a ser compensada com a de seus perigos, ameaças e riscos. Não há contemporaneidade intelectual em sugerir uma mudança na rede porque tal atitude representaria um profundo desconhecimento das conquistas que, graças a ela,a humanidade está alcançando. Mas a sacralização das enormes possibilidades de progresso que a internet oferece é uma abordagem tão injusta
como sua demonização. A rede não é uma panacéia universal, e sua extensão e aperfeiçoamento tecnológico, a cada dia mais versátil, gera efeitos colaterais de gravíssimas consequências. Agora chegou o momento de eriçar as defesas, ante a rede, de uma das propriedades vertebrais das sociedades ocidentais, a intelectual, de menor envergadura jurídica, pelo menos até agora, a respeito da imobiliária e a industrial.
Robert Levine constata em seu documentado livro que “cerca de um quarto do tráfego mundial da internet consiste em conteúdos pirateados
Os direitos derivados da propriedade intelectual se mostram por muitas instâncias como contraditórios ao direito –frequentemente constitucionalizado– de acesso universal aos produtos culturais. Certo é que o constitucionalismo do século passado avaliou o acesso à educação e à cultura –conceitos diferentes– como universais, mas no que corresponde à segunda, em modo algum estabeleceu sua gratuidade. Com a aplicação de uma interpretação
analógica a respeito dos direitos à saúde e a educação, se estendeu a crença de que a produção cultural e a informativa deveriam gozar de um estatuto de aquisição não onerosa. Daí nasce essa cultura da gratuidade que despojou a denominada pirataria de conotações socialmente negativas, de modo tal que incorrer nessa prática para o consumo de informações elaboradas –além das notícias– e de obras de criação carece de uma eficaz reprovação –não jurídica, como em muitos países, embora de forma precária e titubeante–, mas coletiva ou social.
No último mês de março, o romancista e ensaísta espanhol Javier Cercas se expressava nestes termos no jornal El País: “O doutor Johnson opinava que só os idiotas escrevem sem cobrar. Tinha razão, e eu o sei muito bem, porque até meus 40 anos não fiz mais do que o idiota; e muito temo que em breve terei que voltar a fazê-lo. Segundo menciona o relatório da FGEE, 58% dos espanhóis já leem em formato digital; mas deles, 68% fazem download gratuitamente dos livros. Sou incapaz de fazer uma interpretação otimista deste dado. Só me ocorre dizer que, contra semelhante roubo, como contra a corrupção, não cabe mais defesa (além de professores bem pagos) que uma lei eficaz e políticos que se atrevam a promulgá-la e aplicá-la”.
A pirataria é considerada por um intelectual de primeira linha como roubo e assimilada à corrupção, opinião na qual converge, com palavras diferentes,
mas ao fio do mesmo discurso, Antonio Muñoz Molina em um artigo (“Grande Indústria”) publicado também no El País. Para o prosista, “um escritor
ou um músico que reivindique de peito aberto o direito não de viver de seu trabalho, mas receber uma mínima compensação por parte de quem, pouco ou muito, se aproveita dele, receberá comentários de uma agressividade que dá calafrios, bastante maior que a provocada por um banqueiro ou um político ladrão. A ideia que um livro, um filme, um disco, geram um trabalho digno para as pessoas qualificadas graças às quais chegam a existir e que esse foco modesto de prosperidade se propaga além delas, não parece merecer a consideração nem de uma parte do público, nem dos dirigentes políticos”.
Irromperam –como negócios parasitários– os agregadores e motores de busca que não só se beneficiam do trabalho de outros mas, além disso, incorporam lucro por inserção de publicidade
As deprimidas opiniões destes dois autores de referência estão avalizadas por um estudo de imprescindível leitura para compreender a profundidade do espólio cultural e informativo que se perpetua na rede. Me refiro ao livro publicado por Robert Levine intitulado “Parásitos” (Ariel), subtitulado expressivamente assim: “Como os oportunistas digitais estão destruindo o negócio da cultura”. O autor se questiona no prólogo de
sua obra se “é o momento de se perguntar se a indústria cultural como a conhecemos pode sobreviver à era digital” e, avançando no terreno fronteiriço da informação, “se alguma indústria midiática poderia prosperar em um entorno no qual a informação pode ser conseguida tão facilmente”. As respostas não são precisamente otimistas porque Levine constata com dados que “cerca de um quarto do tráfego mundial da internet consiste em conteúdos pirateados”. Do que deduz que “ao transformar em essencialmente opcional o pagamento por conteúdos, a pirataria fixou o preço dos bens digitais em zero”. Disso infere que “a única coisa que todo o mundo lhe dirá sobre internet é que a informação quer ser de graça (…) já que o custo de publicá-la é cada vez mais baixo”.
Está em jogo a concepção de um meio de comunicação como negócio legítimo e, além disso, o jornalismo como tal, que a rede ameaça em transformar em um ofício inútil com o qual traria prejuízo moral
Já temos em cima da mesa não só o problema gravíssimo da proletarização dos criadores culturais, mas também a inviabilidade dos novos modelos de negócio dos meios de comunicação –do jornalismo, definitivamente– alternativos ao tradicional do papel, no caso emblemático dos periódicos. Levine é muito expressivo a respeito: “A ideia que os meios de comunicação online serão inevitavelmente gratuitos vem da teoria de que o preço de qualquer bem deveria cair a seu custo marginal. Como a distribuição digital fica mais barata a cada ano, o custo marginal dos meios de comunicação segue se aproximando
de zero”. Neste panorama irromperam –como negócios parasitários– os agregadores e motores de busca que não só se beneficiam do trabalho de outros mas, além disso, incorporam lucro com a inserção de publicidade. Nestas condições, o jornalismo informativo online está chamado à precarização, razão pela qual, “até o momento, o conteúdo gerado pelos negócios online não pode competir com o das companhias de meios tradicionais” como ressalta Robert
Levine.
É inquestionável que a retificação desta inércia de espólio depende de uma educação em valores que não se enraizaram desde a base escolar e de uma eficaz legislação de verossímil aplicação. Mas também de uma mudança radical das vítimas desta situação que são as entidades que agrupam os criadores –músicos, escritores, atores, produtores–, estáticas e resignadas demais e, especialmente, de um giro copernicano na demagogia suicida dos meios de comunicação que com o míope afã de ganhar audiência de internautas fomentaram um clima social como o denunciado por Javier Cercas e Antonio Muñoz
Molina e reflete com total veracidade Robert Levine em seu livro. Porque não só está em jogo a concepção como negócio –sempre legítimo– de um meio de comunicação, mas o jornalismo que a rede ameaça transformar em um ofício fossilizado e inútil, ajudando a provocar um prejuízo moral às sociedades democráticas. Ou seja, épreciso reagir, porque não estamos limitando a liberdade de expressão nem a acessibilidade à informação e à cultura, mas tentando pôr fim ao espólio.