A criatividade como decreto
Modo “prestação de contas”.
Escrevo isto do sofá do apartamento onde vivo com minha família. Estes dias completamos um ano desde que se identificasse o primeiro caso de COVID-19 na Colômbia, quatro desde o nascimento de meu filho, treze de casada, oito de minha filha mais velha, onze desde a publicação de minha primeira novela. Da mesma forma que os que leem este texto, não recordo ter vivido uma pandemia. E, possivelmente, como os que leem, sou uma fã das listas.
Sinto que a crise nos trouxe uma obsessão particular pela prestação de contas. Fazer balanços. Somas e subtrações. Combinar, comparar: como era a vida antes do coronavírus; como se contam outras enfermidades similares em novelas como “O Decameron” de Boccaccio, “A Peste”, de Camus, ou “O amor nos tempos do cólera”, de García Márquez; se a peste negra, se a gripe espanhola; se somos melhores ou piores que antes; se mais desiguais, populistas, desequilibrados, assépticos.
E é que no último ano quase tudo mudou: nossa forma de aprender, trabalhar, nos relacionar. Como se isso fosse pouco, mudou também a política, a economia, a interação com a tecnologia. E não esqueçamos que durante um ano a pandemia parece ter sido o único tema de conversação em todos os países e todos os idiomas, além disso.
Para ser criativo há que combinar a consciência, atenção, sensibilidade e atrevimento da criança que dá seu primeiro passo.
E para mim, o mais excepcional: nós, seres humanos, descobrimos ter uma faculdade natural, única, para estar de acordo. Quem diria. Em frente a um medo compartilhado, todos obedecemos, deixamos que nos meçam a temperatura à entrada dos edifícios, como ovelhas. Aceitamos deixar de enviar as crianças ao colégio, não voltamos ao escritório, deixamos de ir a festas e shows, e nos fechamos para sair somente para coisas urgentes e sempre usando uma máscara.
Me surpreende que sendo um rebanho tão obediente como descobrimos que podemos ser agora que compartilhamos um medo global a enfermar e morrer, não tenhamos usado essa capacidade de organizar-nos e responder de forma coordenada ante uma ameaça conjunta para reagir rapidamente como soubemos fazê-lo frente ao COVID. Por que não tomar então medidas assim de contundentes frente à mudança climática? Ou em frente à crise migratória e as crescentes xenofobias? Ou para mitigar a pobreza e a crescente desigualdade? Às vezes me pregunto se a crise é de criatividade ou mais de liderança para alcançar metas a favor do bem comum.
Reinventar-se ou morrer
O caso é que já passou um ano e não está claro que sejamos melhores nem piores. Seguimos sendo os mesmos, apesar de que tenhamos filosofado mais do que o normal, viajado menos, saído pouco a restaurantes ou feito mais compras por internet. Para bem ou para mal, para a privilegiada minoria dos que podemos viver sem ter que sair de casa para trabalhar (os que estamos aqui reunidos em frente a este texto), a vida mudou sem chegar ao xeque mate. E, no entanto, para muitas pessoas, empresas, governos, esta foi uma prova de fogo. “Há que inovar”, “em tempos de tempestades se inventaram os moinhos”, e assim. Dizemos o que nos permite seguir. E, em alguns casos, não faltam os que efetivamente se reinventam.
Atrever-nos a estar equivocados. A abandonar nossas crenças, a reconhecer-nos contraditórios ou arbitrários, é parte do arriscado jogo de mudar de ideias.
E é que para sobreviver há que reinventar-se. Para reinventar-se há que inovar. Para inovar há que ser criativo. E para ser criativo há que combinar a consciência, atenção, sensibilidade e atrevimento da criança que dá seu primeiro passo. Isso é. Todos demos um primeiro passo alguma vez. O fizemos olhando aos que o faziam, imitando-os, caindo, inclusive fazendo hematomas, mas voltando a levantar. Sem esse primeiro passo não haveríamos podido ir a nenhuma parte. Nunca. E agora estamos aqui. Mais perto ou mais longe de onde queremos chegar, mas com a claridade de que quem teme equivocar-se, falhar, cair, não chega. A criatividade é risco, aventura.
E sim, me dedico a contar histórias, um ofício considerado criativo per se, mas o certo é que a criatividade não somente está nas artes e na ciência. Está em todos os ofícios e tarefas. Se trata de relacionar-se com as coisas a partir da paixão, a partir da noção sensível, intuitiva e consciente, mas livre de conceitos e normas previamente estabelecidos. O estado mental que dá passo à criatividade é o de um interesse absoluto e total pelo que se está fazendo.
Com a disposição da criança que dá seu primeiro passo podem conceber-se estruturas novas, as que se escapam das já praticadas. Atrever-nos a estar equivocados. A abandonar nossas crenças, a reconhecer-nos contraditórios ou arbitrários, é parte do arriscado jogo de mudar de ideias, a despojar-se da equipagem mental que às vezes se faz pesada e não nos deixa sair ao mar. Voltar a pensar nossas prioridades, reorganizar nossas vidas, é uma das provas que nos prescreve esta pandemia. Para cumpri-la, teremos que arriscar. Tal como diz o proverbio japonês: “Salta, depois encontrarás o chão”.