UNO Julho 2020

Privacidade e dados na era pós covid-19

No mês de abril passado, a Apple e o Google anunciavam um surpreendente acordo: devido à crise da COVID-19, as duas empresas colaborariam para criar uma aplicação de rastreio com uma colossal base de dados capaz de inquirir os movimentos e contatos de até três bilhões de usuários. Um anúncio inquietante por dois motivos: o primeiro tem que ver com direitos fundamentais, e se predica no fato de que duas Big Tech, e por extensão seus clientes (sejam governos ou empresas) tenham potencialmente o acesso a cada movimento de praticamente a metade da população mundial. O segundo tem que ver com a economia: é preocupante que duas grandes empresas – quase-monopolísticas em si mesmas— possam, sob a desculpa de uma crise global, estreitar sua colaboração.

Vigiar e curar? A sedução do autoritarismo tecnológico

Uma das reflexões acadêmicas chave do século passado sobre os efeitos da vigilância foi Vigiar e Castigar de Michel Foucault, onde se analisavam as transformações dos regimes penitenciários. Hoje bem poderíamos haver titulado este artigo Vigiar e Curar. Observamos, sob uma lógica de saúde pública, justificações e pesquisas de soluções baseadas na vigilância massiva. Inspirados nas experiências de vários países da Ásia Oriental, vários estados estão interessados em imitar este modelo baseado na monitorização tecnológica. O Qatar introduziu uma aplicação móvel obrigatória para rastrear cada movimento de seus cidadãos, e classificá-los em quatro níveis de suspeita, sob penas de prisão de até três anos. Em qualquer caso, resulta destacável que estas demandas não somente tenham procedido de governos autoritários. Numerosos políticos e periodistas em democracias liberais exigiram este tipo de soluções.

No entanto, refugiar-se nas políticas de emergência para implementar sistemas que supõem uma intromissão sem precedentes nas atividades dos cidadãos não parece o mais adequado. Ao igual que em outros setores da economia, cabe inspirar-se na preferência europeia pelo “princípio de precaução”. A ideia de que qualquer solução tecnológica deve aplicar-se levando em consideração os possíveis efeitos secundários negativos, sendo implementados gradualmente e com mecanismos adequados para prestar contas e sua retração em caso de resultados não desejados.

A tentação da maçã

Efetivamente, a União Europeia demonstrou ter o enfoque mais sofisticado na direção da emergência do setor digital e sua principal matéria prima (dados). O Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD), que entrou em vigor em 2018, outorgava direitos aos usuários sobre sua informação pessoal. Ao mesmo tempo, no terreno comercial, a Comissária Vestager iniciou os casos mais ambiciosos sobre concorrência e mercado contra Google, Apple e outras tecnológicas norte-americanas.

No entanto, a questão fundamental é a relativa falta de liderança europeia dentro do setor digital, que ficou mais patente que nunca durante a crise. Com uma capacidade estatal minada e dedicada ao setor de saúde, os líderes dos 27 tiveram muitos problemas para desenvolver aplicações de rastreio solventes.

Diante disto, Google, Facebook ou Apple são a “maçã” na árvore do conhecimento, oferecendo uma base de dados onde a maioria de europeus já está registrada. Com o relaxamento das normas de concorrência, assistimos a um coquetel perfeito para a centralização no setor digital.

“Devemos assegurar-nos de que este sistema de garantias siga primando ante as tentações autoritárias que emerjam nas próximas décadas”

Na direção de uma resiliência digital europeia

Qual deveria ser a via europeia, diante desta disjuntiva? Efetivamente, uma aposta continuísta com seu legado, assegurando que nem as corporações nem os Estados abusam desta necessidade temporária de vigiar e curar.

No que diz respeito aos direitos digitais, como assinala Veena Dubal (professora na Universidade de Califórnia) devemos utilizar este momento para reflexionar e “demandar restrições massivas à recolecção, a construção de barreiras digitais e a permanência de limites à vigilância biométrica”. Um primeiro passo essencial deve, por conseguinte, ser exigir que se apaguem todos os dados recompilados durante a crise da COVID-19 uma vez que se controle.

Neste sentido, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos insistiu no carácter fundamental do direito à privacidade, que não pode ser violado sob a desculpa “da segurança nacional”. Devemos assegurar-nos de que este sistema de garantias siga primando ante as tentações autoritárias que emerjam nas próximas décadas. Além disso, em nosso país deverão estabelecer-se salvaguardas técnicas atualizando as responsabilidades da Agência Espanhola de Proteção de Dados e criando novos organismos similares, por exemplo, ao CNCTR francês.

 

Bernardino León
Pesquisador doutor em Sociologia em SciencesPo
É professor ajudante de Teoria Política e Estudos de Segurança na Paris School of International Affairs de SciencesPo. Forma parte da equipe de GUARDINT, um projeto colaborativo de SciencesPo, King’s College London e o WZB dedicado a estudar as limitações e desafios que existem no controle e a prestação de contas dos serviços de inteligência na Europa. Seu trabalho foi financiado pela Fundação “La Caixa” e pela Agência Nacional da Pesquisa francesa (ANR). [França] Gianfranco
Roy Cobby
Doutorando em Humanidades Digitais no King’s College de Londres.
Atualmente pesquisando o impacto da agricultura digital e o modelo de plataformas sobre o desenvolvimento no Sul Global. Trabalhou no setor privado em marketing, comunicação estratégica e serviços de consultoria. Colabora em meios tratando questões de política e economia, particularmente política industrial. [Reino Unido]

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